1980: Entrevistado por Tim Rice no Plaza Hotel, em Nova Iorque, para o programa Friday Night – Saturday Morning da BBC2, durante o mês de outubro. Difundido a 10 de outubro.
Tim Rice: E agora, Bowie em Nova Iorque. A peça na qual a estrela de rock David Bowie obteve um triunfo notável na Broadway chama-se O Homem Elefante (The Elephant Man). A história situa-se no final do século XIX, na Inglaterra de John Merrick, desempenhado por Bowie, um homem grotescamente deformado que padeceu uma existência miserável enquanto atração patética de circo até ao momento em que deparou com a amizade de um jovem e brilhante cirurgião. Igualmente envolvida na reabilitação de John Merrick esteve uma bonita atriz inglesa, Mrs. Kendal, magnificamente interpretada por Patricia Elliot. Para espalhar alguma confusão, um filme sobre John Merrick com John Hurt acaba de estrear mas, além da temática, não existe relação entre os dois projetos. A primeira aparição de Bowie enquanto ator em pleno foi recebida com louvores quase universais dos críticos nova-iorquinos (e sei pessoalmente que podem, por vezes, ser um pouco desagradáveis), e as filas para a aquisição de bilhetes são longas. No primeiro excerto a que vamos assistir, o médico, Frederick Treves, desempenhado por Donal Donnely, procura convencer O Homem Elefante de que, pela primeira vez na vida, tem um lar.
Passa um excerto da representação.
Segue-se comentários de espetadores no exterior do teatro.
Um jovem: Gosto de David Bowie na peça. Consegue ver-se a sensibilidade ao longo da representação… É bom vê-lo num papel diferente do musical.
Uma mulher: Ele transporta uma vulnerabilidade que não encontrei no ator que o antecedeu. Nota-se-lha no corpo e também na expressão. Foi uma representação fantástica.
Um homem: É um lado dele que desconhecia e estou impressionado.
Uma mulher: Visualizamos aquilo que seria o verdadeiro aspeto deste homem. É um desempenho excecional.
Um homem: É maravilhoso, gosto muito dele.
Tim Rice: Bom, eis-nos nesta maravilhosa e quente suite do Plaza Hotel. Todas elas são quentes, mas esta é uma das mais quentes. E obrigado por me cederes o teu tempo. Ontem à noite, vi-te na Broadway. Foi a primeira vez em que te vi numa representação legítima. Porque é que o fizeste? A pergunta óbvia…
David Bowie: Artes cénicas. Porque alguém me pediu que o fizesse.
Tim Rice: O que te atraiu foi a peça ou a ideia de…
David Bowie: Nem por isso. Eu vi a peça… Perdi-a quando esteve em Londres, no Hampstead. Mas, depois, o Philip Anglim (ator norte-americano que desempenhou o papel de John Merrick antes de Bowie) trouxe-a para Nova Iorque. E voltei a perdê-la off-Broadway (representação num teatro com entre 100 e 4999 lugares sentados). De cada uma das vezes tinha tido vontade de a ir ver porque havia um livro de Frank Edwards (escritor e locutor de rádio norte-americano, um dos pioneiros da rádio, falecido em 1967) que se chamava Strange People e que saiu quando eu era um teenager, que tinha uma série de coisas diferentes… Um jovem negro entrou num hospital de Chicago e disse que não podia deitar-se nos lençóis porque se iriam incendiar, deitou-se na cama e a almofada pegou fogo imediatamente. Mantiveram-no 24 horas sob custódia, mas ele fugiu aterrorizado e nunca ninguém soube o que lhe acontecera. Era um livro cheio desse tipo de histórias e uma delas era a de John Merrick, O Homem Elefante. E foi algo que me agradou desde então por causa da minha… Tenho uma espécie de tendência ecléctica para aberrações e gente isolada e alienada, portanto, quando consigo informações sobre gente assim… Pelo menos, mentalmente… A história transformou-se numa peça, o que reacendeu o meu interesse. Fui vê-la na Broadway quando já tinha sido polida o suficiente para lá passar. E fiquei boquiaberto. Trata-se de uma espécie de peça clássica de escrita melodramática Vitoriana com um ligeiro subtexto socialista… Mas gostei muito, achei a estrutura excelente. E não pensei mais no caso. E então, Jack Hofsiss, o encenador, visitou-me uns dois meses mais tarde, estava de regresso a Nova Iorque a gravar o álbum Scary Monsters, e perguntou-me se consideraria ficar com o papel no final do ano. E fiquei atónito porque nunca ninguém me pedira que fizesse algo de tão supostamente legítimo. E respondi que teria o maior prazer.
Tim Rice: E começaste fora de Nova Iorque?
David Bowie: Sim, começámos, para jogarmos pelo seguro e fazermos a representação algures onde eu pudesse morrer sem alvoroço.
Tim Rice: Pois. (risos)
David Bowie: Em Denver. Representei uma semana em Denver, seguida de três em Chicago. E, então, sentiram que já estava pronto para o estrelato. (risos)
Tim Rice: Mas a verdade é que não morreste por lá.
David Bowie: Estrelato! (“Big Time!” – cantado, referência ao tema Virginia Plains, dos Roxy Music). Uma imitação do Brian Ferry, tens de tudo no programa!
Tim Rice: E a verdade é que tudo correu muito bem, os críticos reservaram-te uma receção muito amável.
David Bowie: Sim.
Tim Rice: Depois de uma carreira de tantos anos no mundo do rock, achas que ser elogiado por… (“after getting a pretty good run in the rock world”)
David Bowie: É mais um discurso desarticulado (lisp) do que uma carreira (run)! (risos) É pelo menos, embaraçoso, mas…
Tim Rice: Deves sentir-te quase indiferente aos louvores das publicações de rock, pelo menos as inteligentes. Sentes um estímulo muito maior com a resposta do público da Broadway, trata-se de um estímulo absolutamente novo para ti?
David Bowie: Os louvores das publicações de rock nunca me chegaram de mão beijada.
Tim Rice: A ninguém, sem dúvida.
David Bowie: (risos) Sem dúvida… Trata-se de uma, não, parte dela… Tenho contado com um público excelente que, regra geral, me tem sido extremamente leal durante todas as minhas mudanças, que têm sido, como sabes, pelo menos diversificadas. E tenho contado com uma banda fulcral que me acompanhou durante tudo isso. Então, tento nunca ser complacente com o que tenho vindo a fazer, o que me permite avançar em direcções diferentes. Mas sem dúvida que foi muito compensador poder fazer algo, como se diz, legítimo. Na verdade, ter tido que ter esse tipo de disciplina e descobrir que a conseguia suportar e trabalhar dentro dos limites estritos de outra pessoa…
Tim Rice: Já te aconteceu encontrares-te com pessoas que chegam até ti e dizem: “Gostei do seu desempenho mas nunca tinha ouvido falar de si”? Ou seja, trata-se de uma coisa possível?
David Bowie: Sim, esse elemento já surgiu. Houve, pelo menos, alguns frequentadores assíduos do teatro que chegaram e… Bom, já tinham ouvido de algum modo perverso ou… (risos) ou algum tipo de ideia corrompida do que me move. E acho que agora têm uma imagem diferente de mim. Mal sabem eles! (risos)
Tim Rice: Durante quanto tempo vais desempenhar o papel na Broadway?
David Bowie: Hmm… Duas horas. (risos)
Tim Rice: Quantas duas horas?
David Bowie: Cerca de… Acho… Pessoalmente, não penso que possa ultrapassar o Natal, sei que até ao Natal vou estar amarrado.
Tim Rice: Um prazo alargado!
David Bowie: Longo prazo. Para alguém que, como eu, seja uma espécie de saltitão por natureza, é um prazo longo.
Tim Rice: E gostarias de regressar aos palcos se alguém mais to pedisse?
David Bowie: Não especialmente. Não. Aprendi muitíssimo durante as poucas semanas em que tenho estado envolvido nisto. Espero poder explorar mais o papel. Pode acontecer que se não o fizer esteja a desperdiçar muito tempo. Gostaria de me aventurar mais com o papel. Tenho-me mantido muito colado à forma como inicialmente o quis interpretar. Enquanto a imprensa vai falando e vai havendo noites de estreia… Agora, as coisas estão a acalmar.
Tim Rice: Claro.
David Bowie: Gostaria de desenvolver mais o papel. E há certos caminhos que gostaria de percorrer e ainda não tive coragem para tal. Mas talvez agora tire proveito da situação.
Passa novo excerto da representação.
Tim Rice: Bom, sucede simultaneamente que um novo álbum teu acabou de… já foi publicado aqui, nos Estados Unidos?
David Bowie: Há coisa de uma semana, sim.
Tim Rice: Acabou de sair e e relativamente ao título, Scary Monsters…
David Bowie: Sim.
Tim Rice: … poderíamos supor uma ligação entre o título e o facto de que estás a representar algo que poderia ser descrito como um monstro assustador. É coincidência?
David Bowie: Sincronicidade!
Tim Rice: Sincronicidade?
David Bowie: Sincronicidade. Quero dizer, eu…
Tim Rice: O que significa sincronicidade? (risos)
David Bowie: Precisamente o que disseste. De certa forma, é uma coincidência que… Bom, vamos investigar as diferentes camadas da cebola… Não, é uma coisa em que já estava a trabalhar, tal como disse, antes de tudo. É bem possível que a ideia de Homem Elefante tenha ficado em mim. Enquanto título. Mas eu sei, apenas uma referência da memória, novinha em folha, que na verdade surgiu de um pacote de cereais da Kellogg’s. Na parte de trás dizia que ofereciam, dizia “compre o seu” ou “compre a sua cópia de”, uma cópia não, não se ganhava uma cópia de… bom, atualmente até se pode ganhar um portefólio dos cereais da Kellogg’s. No interior, encontraremos monstros assustadores e super-heróis. Então, supostamente encontraremos o Super-Homem e mastigamos tudo… E como estava a compor um álbum nova-iorquino pareceu-me o título global perfeito para cada uma das coisas em que estava a trabalhar…
Tim Rice: Surpreendeu-te o enorme…
David Bowie: Portanto, sim, foi uma coincidência.
Tim Rice: Ficaste surpreendido com o enorme sucesso do single em Inglaterra?
David Bowie: Hmm… Com franqueza, sim, fiquei.
Tim Rice: Parece-te possível que o vídeo tenha muito a ver com isso?
David Bowie: Não sei, na verdade não sei. A minha tendência é para achar… Muito honestamente, suponho que o Major Tom transmita algum tipo de conforto, tratando-se de uma velha personagem minha. Já data de 68 ou 69. Acho que é possível que muita gente sinta empatia face a ele por se ter tornado uma espécie de ida e volta a uma era. Pretendia apenas atualizá-lo um pouco. Numa atmosfera do género da cantiga de roda Vitoriana. Apesar de não ser Vitoriano, possui aquela sensação de náusea de algumas dessas “ring a ring o’ roses” (cantando), aquele tipo de coisa que é sobre a peste e que nos diz que vamos todos cair mortos. E foi isso que fiz com o tema.
Tim Rice: Realizaste tu mesmo o vídeo?
David Bowie: Sim.
Tim Rice: Contas seguir esse rumo do filme na primeira pessoa?
David Bowie: Para já, acho bastante provável continuar a trabalhar com o David Mallett, com quem também trabalhei neste. Temos uma excelente relação de trabalho e o David dá-me muitíssima liberdade para fazer basicamente o que quiser, como quero fazer a edição, escrever o roteiro, mostrar-lhe exatamente os fotogramas que pretendo utilizar e como devem ser utilizados. No fim, ele também adiciona o seu toque pessoal. E, sobretudo em Ashes to Ashes, a combinação foi muito bem-sucedida.
Tim Rice: Ficou muito caro, quero dizer…
David Bowie: Ficou-me bastante caro, sim. Nada a ver com alguns números que se aventam relativamente a alguns artistas ditos maiores. Foi um orçamento bastante bom, mas…
Tim Rice: Quem são, actualmente, os teus heróis musicais?
David Bowie: Heróis musicais? (estala a língua) Essa é difícil! Eu sei quem, hmm, certas coisas que realmente admiro, neste momento estou apaixonado por, não é um termo demasiado forte, estou sempre a ouvi-los: Philip Glass e Steve Reich, gosto mesmo muito.
Tim Rice: O Philip Glass acaba de criar uma ópera sobre, deixa-me pensar bem, Buda ou Ghandi, algo assim (referência a Satyagraha, Insistência na Verdade em sânscrito, ópera de 1979 baseada de modo livre na vida de Ghandi)?
David Bowie: Não sei o que fez de novo. O último trabalho de que soube…
Tim Rice: Li um artigo sobre ele…
David Bowie: A sério?
Tim Rice: Devo confessar…
David Bowie: É muito provável. Fui muito indelicado, um destes dias estive com ele e nem lhe perguntei o que tem feito. Se calhar, estava demasiado ocupado a falar no que eu tenho feito.
Tim Rice: Sentes admiração por alguns dos teus, digamos, contemporâneos, gente que se lançou ao mesmo tempo que tu, ou…
David Bowie: Nem por isso. Acho que simplesmente continuamos amigos. Mesmo. Se calhar, é por isso que continuamos amigos, porque não gostamos da música um do outro apesar de eu saber a quem te referes. (risos) Não nos damos muito bem com a música um do outro, isso costuma surgir nas nossas conversas e acho que é por isso que acabamos a conviver sem quaisquer sentimentos do tipo pavão.
Tim Rice: Sim. Na tua longa e ilustre carreira já de 10 a 12 anos no topo, de que mais te orgulhas?
David Bowie: (estala a língua)
Tim Rice: Continua!
David Bowie: Meu Deus, só consigo dar uma resposta evasiva a uma coisa dessas. Isso é mesmo… Eu… Isso… Sabes, é mesmo difícil. De momento, esta semana obviamente, o facto de ter conseguido manter uma personagem daquela intensidade no palco. Mas acho que esse tipo de orgulho não é uma boa coisa de se ter enquanto se é um artista no ativo…
Tim Rice: Sim.
David Bowie: No que me toca, é um enorme desespero que me perguntem de que me orgulho porque não é assim que as coisas funcionam. Posso dizer-te muito mais facilmente do que é que não gostei, mas acho que é sobretudo uma questão de nos reavaliarmos constantemente. O facto de nunca ter tido que comprar um dos meus discos, suponho… (risos) A RCA deu-me sempre um. Um!
Tim Rice: (risos) David, muito obrigado. Foi um grande prazer estar contigo…
David Bowie: O prazer foi meu! Eu tento…
Tim Rice: De certeza que comprei mais do que um ou dois dos teus álbuns e não tenho dúvidas de que ainda comprarei mais.
David Bowie: Sinto-me lisonjeado.
Tim Rice: E boa sorte para o resto da temporada do Homem Elefante.
David Bowie: Obrigado. (faz uma pequena vénia e sorri) Obrigado.
O público aplaude.
Tim Rice: David Bowie na Broadway. Neste preciso momento em que olham para o vosso ecrã e pensam nas estimulantes atividades para esta noite, tais como encher uma botija de água quente, David Bowie prepara-se para subir ao palco no Booth Theatre, em Nova Iorque. Se forem passar o Natal a Nova Iorque e conseguirem arranjar bilhete para O Homem Elefante, não hesitem. Obrigado, David.
Passa um excerto da representação.
Segue-se comentários de espetadores no exterior do teatro.
Um jovem: Gosto de David Bowie na peça. Consegue ver-se a sensibilidade ao longo da representação… É bom vê-lo num papel diferente do musical.
Uma mulher: Ele transporta uma vulnerabilidade que não encontrei no ator que o antecedeu. Nota-se-lha no corpo e também na expressão. Foi uma representação fantástica.
Um homem: É um lado dele que desconhecia e estou impressionado.
Uma mulher: Visualizamos aquilo que seria o verdadeiro aspeto deste homem. É um desempenho excecional.
Um homem: É maravilhoso, gosto muito dele.
Tim Rice: Bom, eis-nos nesta maravilhosa e quente suite do Plaza Hotel. Todas elas são quentes, mas esta é uma das mais quentes. E obrigado por me cederes o teu tempo. Ontem à noite, vi-te na Broadway. Foi a primeira vez em que te vi numa representação legítima. Porque é que o fizeste? A pergunta óbvia…
David Bowie: Artes cénicas. Porque alguém me pediu que o fizesse.
Tim Rice: O que te atraiu foi a peça ou a ideia de…
David Bowie: Nem por isso. Eu vi a peça… Perdi-a quando esteve em Londres, no Hampstead. Mas, depois, o Philip Anglim (ator norte-americano que desempenhou o papel de John Merrick antes de Bowie) trouxe-a para Nova Iorque. E voltei a perdê-la off-Broadway (representação num teatro com entre 100 e 4999 lugares sentados). De cada uma das vezes tinha tido vontade de a ir ver porque havia um livro de Frank Edwards (escritor e locutor de rádio norte-americano, um dos pioneiros da rádio, falecido em 1967) que se chamava Strange People e que saiu quando eu era um teenager, que tinha uma série de coisas diferentes… Um jovem negro entrou num hospital de Chicago e disse que não podia deitar-se nos lençóis porque se iriam incendiar, deitou-se na cama e a almofada pegou fogo imediatamente. Mantiveram-no 24 horas sob custódia, mas ele fugiu aterrorizado e nunca ninguém soube o que lhe acontecera. Era um livro cheio desse tipo de histórias e uma delas era a de John Merrick, O Homem Elefante. E foi algo que me agradou desde então por causa da minha… Tenho uma espécie de tendência ecléctica para aberrações e gente isolada e alienada, portanto, quando consigo informações sobre gente assim… Pelo menos, mentalmente… A história transformou-se numa peça, o que reacendeu o meu interesse. Fui vê-la na Broadway quando já tinha sido polida o suficiente para lá passar. E fiquei boquiaberto. Trata-se de uma espécie de peça clássica de escrita melodramática Vitoriana com um ligeiro subtexto socialista… Mas gostei muito, achei a estrutura excelente. E não pensei mais no caso. E então, Jack Hofsiss, o encenador, visitou-me uns dois meses mais tarde, estava de regresso a Nova Iorque a gravar o álbum Scary Monsters, e perguntou-me se consideraria ficar com o papel no final do ano. E fiquei atónito porque nunca ninguém me pedira que fizesse algo de tão supostamente legítimo. E respondi que teria o maior prazer.
Tim Rice: E começaste fora de Nova Iorque?
David Bowie: Sim, começámos, para jogarmos pelo seguro e fazermos a representação algures onde eu pudesse morrer sem alvoroço.
Tim Rice: Pois. (risos)
David Bowie: Em Denver. Representei uma semana em Denver, seguida de três em Chicago. E, então, sentiram que já estava pronto para o estrelato. (risos)
Tim Rice: Mas a verdade é que não morreste por lá.
David Bowie: Estrelato! (“Big Time!” – cantado, referência ao tema Virginia Plains, dos Roxy Music). Uma imitação do Brian Ferry, tens de tudo no programa!
Tim Rice: E a verdade é que tudo correu muito bem, os críticos reservaram-te uma receção muito amável.
David Bowie: Sim.
Tim Rice: Depois de uma carreira de tantos anos no mundo do rock, achas que ser elogiado por… (“after getting a pretty good run in the rock world”)
David Bowie: É mais um discurso desarticulado (lisp) do que uma carreira (run)! (risos) É pelo menos, embaraçoso, mas…
Tim Rice: Deves sentir-te quase indiferente aos louvores das publicações de rock, pelo menos as inteligentes. Sentes um estímulo muito maior com a resposta do público da Broadway, trata-se de um estímulo absolutamente novo para ti?
David Bowie: Os louvores das publicações de rock nunca me chegaram de mão beijada.
Tim Rice: A ninguém, sem dúvida.
David Bowie: (risos) Sem dúvida… Trata-se de uma, não, parte dela… Tenho contado com um público excelente que, regra geral, me tem sido extremamente leal durante todas as minhas mudanças, que têm sido, como sabes, pelo menos diversificadas. E tenho contado com uma banda fulcral que me acompanhou durante tudo isso. Então, tento nunca ser complacente com o que tenho vindo a fazer, o que me permite avançar em direcções diferentes. Mas sem dúvida que foi muito compensador poder fazer algo, como se diz, legítimo. Na verdade, ter tido que ter esse tipo de disciplina e descobrir que a conseguia suportar e trabalhar dentro dos limites estritos de outra pessoa…
Tim Rice: Já te aconteceu encontrares-te com pessoas que chegam até ti e dizem: “Gostei do seu desempenho mas nunca tinha ouvido falar de si”? Ou seja, trata-se de uma coisa possível?
David Bowie: Sim, esse elemento já surgiu. Houve, pelo menos, alguns frequentadores assíduos do teatro que chegaram e… Bom, já tinham ouvido de algum modo perverso ou… (risos) ou algum tipo de ideia corrompida do que me move. E acho que agora têm uma imagem diferente de mim. Mal sabem eles! (risos)
Tim Rice: Durante quanto tempo vais desempenhar o papel na Broadway?
David Bowie: Hmm… Duas horas. (risos)
Tim Rice: Quantas duas horas?
David Bowie: Cerca de… Acho… Pessoalmente, não penso que possa ultrapassar o Natal, sei que até ao Natal vou estar amarrado.
Tim Rice: Um prazo alargado!
David Bowie: Longo prazo. Para alguém que, como eu, seja uma espécie de saltitão por natureza, é um prazo longo.
Tim Rice: E gostarias de regressar aos palcos se alguém mais to pedisse?
David Bowie: Não especialmente. Não. Aprendi muitíssimo durante as poucas semanas em que tenho estado envolvido nisto. Espero poder explorar mais o papel. Pode acontecer que se não o fizer esteja a desperdiçar muito tempo. Gostaria de me aventurar mais com o papel. Tenho-me mantido muito colado à forma como inicialmente o quis interpretar. Enquanto a imprensa vai falando e vai havendo noites de estreia… Agora, as coisas estão a acalmar.
Tim Rice: Claro.
David Bowie: Gostaria de desenvolver mais o papel. E há certos caminhos que gostaria de percorrer e ainda não tive coragem para tal. Mas talvez agora tire proveito da situação.
Passa novo excerto da representação.
Tim Rice: Bom, sucede simultaneamente que um novo álbum teu acabou de… já foi publicado aqui, nos Estados Unidos?
David Bowie: Há coisa de uma semana, sim.
Tim Rice: Acabou de sair e e relativamente ao título, Scary Monsters…
David Bowie: Sim.
Tim Rice: … poderíamos supor uma ligação entre o título e o facto de que estás a representar algo que poderia ser descrito como um monstro assustador. É coincidência?
David Bowie: Sincronicidade!
Tim Rice: Sincronicidade?
David Bowie: Sincronicidade. Quero dizer, eu…
Tim Rice: O que significa sincronicidade? (risos)
David Bowie: Precisamente o que disseste. De certa forma, é uma coincidência que… Bom, vamos investigar as diferentes camadas da cebola… Não, é uma coisa em que já estava a trabalhar, tal como disse, antes de tudo. É bem possível que a ideia de Homem Elefante tenha ficado em mim. Enquanto título. Mas eu sei, apenas uma referência da memória, novinha em folha, que na verdade surgiu de um pacote de cereais da Kellogg’s. Na parte de trás dizia que ofereciam, dizia “compre o seu” ou “compre a sua cópia de”, uma cópia não, não se ganhava uma cópia de… bom, atualmente até se pode ganhar um portefólio dos cereais da Kellogg’s. No interior, encontraremos monstros assustadores e super-heróis. Então, supostamente encontraremos o Super-Homem e mastigamos tudo… E como estava a compor um álbum nova-iorquino pareceu-me o título global perfeito para cada uma das coisas em que estava a trabalhar…
Tim Rice: Surpreendeu-te o enorme…
David Bowie: Portanto, sim, foi uma coincidência.
Tim Rice: Ficaste surpreendido com o enorme sucesso do single em Inglaterra?
David Bowie: Hmm… Com franqueza, sim, fiquei.
Tim Rice: Parece-te possível que o vídeo tenha muito a ver com isso?
David Bowie: Não sei, na verdade não sei. A minha tendência é para achar… Muito honestamente, suponho que o Major Tom transmita algum tipo de conforto, tratando-se de uma velha personagem minha. Já data de 68 ou 69. Acho que é possível que muita gente sinta empatia face a ele por se ter tornado uma espécie de ida e volta a uma era. Pretendia apenas atualizá-lo um pouco. Numa atmosfera do género da cantiga de roda Vitoriana. Apesar de não ser Vitoriano, possui aquela sensação de náusea de algumas dessas “ring a ring o’ roses” (cantando), aquele tipo de coisa que é sobre a peste e que nos diz que vamos todos cair mortos. E foi isso que fiz com o tema.
Tim Rice: Realizaste tu mesmo o vídeo?
David Bowie: Sim.
Tim Rice: Contas seguir esse rumo do filme na primeira pessoa?
David Bowie: Para já, acho bastante provável continuar a trabalhar com o David Mallett, com quem também trabalhei neste. Temos uma excelente relação de trabalho e o David dá-me muitíssima liberdade para fazer basicamente o que quiser, como quero fazer a edição, escrever o roteiro, mostrar-lhe exatamente os fotogramas que pretendo utilizar e como devem ser utilizados. No fim, ele também adiciona o seu toque pessoal. E, sobretudo em Ashes to Ashes, a combinação foi muito bem-sucedida.
Tim Rice: Ficou muito caro, quero dizer…
David Bowie: Ficou-me bastante caro, sim. Nada a ver com alguns números que se aventam relativamente a alguns artistas ditos maiores. Foi um orçamento bastante bom, mas…
Tim Rice: Quem são, actualmente, os teus heróis musicais?
David Bowie: Heróis musicais? (estala a língua) Essa é difícil! Eu sei quem, hmm, certas coisas que realmente admiro, neste momento estou apaixonado por, não é um termo demasiado forte, estou sempre a ouvi-los: Philip Glass e Steve Reich, gosto mesmo muito.
Tim Rice: O Philip Glass acaba de criar uma ópera sobre, deixa-me pensar bem, Buda ou Ghandi, algo assim (referência a Satyagraha, Insistência na Verdade em sânscrito, ópera de 1979 baseada de modo livre na vida de Ghandi)?
David Bowie: Não sei o que fez de novo. O último trabalho de que soube…
Tim Rice: Li um artigo sobre ele…
David Bowie: A sério?
Tim Rice: Devo confessar…
David Bowie: É muito provável. Fui muito indelicado, um destes dias estive com ele e nem lhe perguntei o que tem feito. Se calhar, estava demasiado ocupado a falar no que eu tenho feito.
Tim Rice: Sentes admiração por alguns dos teus, digamos, contemporâneos, gente que se lançou ao mesmo tempo que tu, ou…
David Bowie: Nem por isso. Acho que simplesmente continuamos amigos. Mesmo. Se calhar, é por isso que continuamos amigos, porque não gostamos da música um do outro apesar de eu saber a quem te referes. (risos) Não nos damos muito bem com a música um do outro, isso costuma surgir nas nossas conversas e acho que é por isso que acabamos a conviver sem quaisquer sentimentos do tipo pavão.
Tim Rice: Sim. Na tua longa e ilustre carreira já de 10 a 12 anos no topo, de que mais te orgulhas?
David Bowie: (estala a língua)
Tim Rice: Continua!
David Bowie: Meu Deus, só consigo dar uma resposta evasiva a uma coisa dessas. Isso é mesmo… Eu… Isso… Sabes, é mesmo difícil. De momento, esta semana obviamente, o facto de ter conseguido manter uma personagem daquela intensidade no palco. Mas acho que esse tipo de orgulho não é uma boa coisa de se ter enquanto se é um artista no ativo…
Tim Rice: Sim.
David Bowie: No que me toca, é um enorme desespero que me perguntem de que me orgulho porque não é assim que as coisas funcionam. Posso dizer-te muito mais facilmente do que é que não gostei, mas acho que é sobretudo uma questão de nos reavaliarmos constantemente. O facto de nunca ter tido que comprar um dos meus discos, suponho… (risos) A RCA deu-me sempre um. Um!
Tim Rice: (risos) David, muito obrigado. Foi um grande prazer estar contigo…
David Bowie: O prazer foi meu! Eu tento…
Tim Rice: De certeza que comprei mais do que um ou dois dos teus álbuns e não tenho dúvidas de que ainda comprarei mais.
David Bowie: Sinto-me lisonjeado.
Tim Rice: E boa sorte para o resto da temporada do Homem Elefante.
David Bowie: Obrigado. (faz uma pequena vénia e sorri) Obrigado.
O público aplaude.
Tim Rice: David Bowie na Broadway. Neste preciso momento em que olham para o vosso ecrã e pensam nas estimulantes atividades para esta noite, tais como encher uma botija de água quente, David Bowie prepara-se para subir ao palco no Booth Theatre, em Nova Iorque. Se forem passar o Natal a Nova Iorque e conseguirem arranjar bilhete para O Homem Elefante, não hesitem. Obrigado, David.