1987: Entrevista Raw and Uncut
David Bowie: Portanto, Phil…
Entrevistador: Podemos começar por falar sobre o Andy Warhol um bocadinho?
David Bowie: Claro.
Entrevistador: Qual é a influência dele na tua vida e no teu trabalho?
David Bowie: Acho que foi uma influência sobretudo indireta. Ou seja, o facto de que ele estava a usar uma banda, os Velvet Underground, com os seus Exploding Plastic Inevitable faz pensar em, como é que se chamava? Era algo assim, não era? Agora, vais ser um Talking Head! (risos)
Entrevistador: Um cabeça concordante (nodding head).
David Bowie: Hmm, e foi mais ou menos porque estava no circuito que me interessei pelas coisas que ele fazia, achei que eram interessantes artisticamente, que ele dava passos ousados… Aplicava valores do design e das artes gráficas à arte séria e académica. Mas, na verdade, foi a inclusão dos Velvet Underground enquanto elementos da sua comitiva, da sua equipa. Ainda assim, só o conheci em finais dos anos 60, inícios dos anos 70, não me lembro do ano. Era uma situação mais ou menos incongruente… Ele estava na The Factory e havia um pico de atividade, toda a gente fazia qualquer coisa, falavam disto, falavam daquilo, e ele ficava muito quieto, como uma espécie de imagem letal de Svengali face a tudo aquilo. Tudo acontecia sem que parecesse que ele participasse no que quer que fosse. Era um tipo de pessoa extraordinariamente hipnótica.
Entrevistador: Ok.
David Bowie: Era muito, muito engraçado. Um homem muito espirituoso, mas demorava bastante até que o conseguíssemos fazer falar.
Entrevistador: Então, tudo isso aconteceu antes de teres escrito a canção sobre ele?
David Bowie: Sim, foi. Hmm, não, eu escrevi a canção do Hunky Dory antes de o ter conhecido. E, depois, toquei-lha na The Factory e ele disse: “Oh, sim. Fixe”. Essa foi a crítica que ele fez à canção. (risos) Não sei se alguma vez gostou dela ou não.
Entrevistador: Muito bem. Vamos passar à conferência de imprensa de hoje.
David Bowie: Sim.
Entrevistador: Porquê esta abordagem? Esta conferência de imprensa ao vivo em…
David Bowie: Bom, certa vez fiz o mesmo em Londres para anunciar a Serious Moonlight Tour e foi tão chato, quer dizer, tão rígido e não gostei de lá estar simplesmente a anunciar datas; o que eu quis, desta vez, foi fazer algo com que me sentisse bastante confortável e senti-me muito melhor numa situação de palco com a banda e, hmm, a tocar. E a sensação é como “Ei, estamos aqui. Nós somos assim: é música e é assim que soamos. Somos uma boa banda de bar!” (risos)
Entrevistador: Não, foi ótimo. É como uma antecipação da tournée, acho que muita gente ficou animada. Vais levar este formato de conferência de imprensa à Europa? Que cidades te interessam mais?
David Bowie: Para mim, pessoalmente, Madrid e Roma. Porque nunca toquei em nenhuma delas. Já estive em Espanha e na Itália mas apenas enquanto turista. Nunca lá toquei. Portanto, acho que vão ser as cidades mais estimulantes.
Entrevistador: Ok. Agora, o álbum parece muito mais roqueiro e um pouco mais ruidoso do que os últimos dois. Pergunto-me se estavas a pensar tocar ao vivo quando o gravaste…
David Bowie: Sem dúvida. Houve duas coisas que foram os ingredientes de tudo… O período da Serious Moonlight, o álbum do Let’s Dance, foi ótimo para mim, criou um som extraordinário, mas com a inclusão dos sopros e a suavidade de tudo aquilo, comecei a sentir-me desconfortável diante da ideia de continuar nessa direção porque me senti um pouco perdido no sentido em que me estava a aproximar de uma área à qual não sentia que pertencesse. Assim, ao chegar a este álbum, abordei-o da forma como me costumava sentir relativamente a… Quando nos perdemos regressamos sempre ao ponto de partida. Portanto, abordei este álbum com a ideia de que me costumava entusiasmar o facto de estar numa banda e tudo vai dar à guitarra. Foi assim que se tornou um álbum orientado para o som da guitarra e quando estava a escrever e a completar material, percebi que era um álbum incrível para levar em tournée e tudo se combinou e eu juntei-lhe a dose de energia necessária para um álbum de rock, para que pudesse funcionar bem no palco.
Entrevistador: Não tocaste nenhum instrumento nos teus dois últimos álbuns. Vais voltar a tocar?
David Bowie: Sim, voltei a tocar porque era uma parte integral do que costumava fazer e produzia o tipo de som que eu achava que tinha a ver comigo pelo facto de tocar algumas das coisas e porque dessa forma contribuía para os seus alicerces. Fossem as teclas ou um tipo específico de guitarra ritmo que toco, que não é como o Carlos Alomar mas funciona. Não é fantástico mas funciona. E então, eu queria regressar a isso e achei agradável estar de volta à banda.
Entrevistador: Este foi um álbum em que deste um grande espaço de manobra à banda ou foi muito dirigido por ti?
David Bowie: Não, este álbum foi muito, muito estruturado. Isto é, fiz demos de tudo antes de lá chegar, passei-as para todos e disse: “Quero que soe exatamente assim, só que melhor”. Porque toquei tudo, programei as caixas de ritmos e depois toquei o baixo e a guitarra, as teclas e as partes de sintetizador, tratei de tudo nas demos e depois passei-as ao Carlos e ao Erdal Kizilçai, que é baterista e baixista e toca o sintetizador e a trompete e as cordas no álbum, e também ao Peter (Frampton). E disse: “É para aí que vou, é esta abordagem que quero”. E as demos não são muito diferentes do álbum final, exceto pelo facto de que claro que está muito mais bem executado.
Entrevistador: Como é que o (Peter) Frampton chegou a este álbum?
David Bowie: Como anteriormente disse, já nos conhecemos há muito tempo, andámos juntos na escola e tudo. Ele era mais novo do que eu, teria uns 12, 13 anos quando eu tinha 15 e só esteve na escola algum tempo porque o pai dele fazia parte dos quadros, era o meu professor de arte, e acho que era bastante duro para o Pete ter o seu pai como professor da escola e, por isso, acabou por a deixar e inscrever-se noutra. Mas na altura em que ele ia ao bloco de artes, que era o sítio onde todos os apreciadores de música paravam, costumávamos levar guitarras para a escola (quando não estávamos a tocar, estávamos a tocar guitarra) e ele costumava chegar e tocar, era incrível, com 13 anos já era um grande guitarrista e, mais tarde, avançou, passou pelos The Herd e pelos Small Faces e eu estava sempre a encontrá-lo, tocámos várias vezes juntos… Certa vez, quando ele estava nos Humble Pie, servi-lhe de músico de suporte e depois, noutro gig, foi a vez de ele me ajudar e, com o passar do tempo, assisti a todas as coisas lamentáveis que lhe aconteceram nos anos setenta, isto é, estava-se a perder a noção de que era um grande guitarrista, de repente tornou-se um herói pop, era um rosto e a câmara passava-lhe diretamente dos dedos para a cara, e não passava disso. E ele detestava tudo aquilo e eu sabia como ele se sentia porque houve alturas em que a minha escrita se perdeu… mas acho que foi culpa minha porque estava a forçar tanto tudo o resto, a nossa teatralidade e tudo isso. E então, no ano passado tornou-se visível que o Peter tinha reencontrado o rumo, junto com a Stevie Nicks (referência ao regresso de Frampton, em 1986, como guitarrista convidado na Rock A Little Tour, de Stevie Nicks, dos Fleetwood Mac), e que queria mesmo tocar e eu pensei: “Caramba, ele é o guitarrista com quem gostaria de trabalhar no meu próximo álbum”, porque ele é mesmo bom. Então, telefonei-lhe e ele disse que adoraria estar no álbum. E, enquanto trabalhávamos no álbum, deu-se o inevitável e ele perguntou: “Vais levar isto para a estrada?”. E eu respondi: “Sim, achas que gostavas de vir?”. “Claro, seria porreiro!”. E eu disse: “Não te importavas de simplesmente fazeres parte da banda?”. E ele respondeu: “Não, gostava mesmo!”. E assim, ele tem uma oportunidade de mostrar o seu talento enquanto guitarrista e, inevitavelmente, há de partir sozinho no ano que vem. Com alguma sorte, as pessoas vão reconhecê-lo por aquilo que é, um excelente guitarrista. E, já agora, também um autor e cantor muito bom. Mas isto vai trazer a sua guitarra de volta à linha da frente.
Entrevistador: O que tem de especial a forma como ele toca? É a melodia ou algo mais?
David Bowie: É uma boa combinação de, hmm… porque o background musical dele é muito semelhante ao meu, uma espécie de consciência inglesa do R’n’B, com todas as coisas R’n’B que ele costumava tocar. Há uma certa dureza contida na sua forma de tocar que me agrada muito e é (o telefone soa) huh (o telefone continua a tocar) hmm…
Entrevistador: Vamos ter que fazer uma pequena pausa. Podias ficar nessa parte em que tinhas o nome do Peter na resposta?
David Bowie: Ah, claro. Sim, sim. Compreendo. Ok.
Entrevistador: Obrigado.
David Bowie: (dá estalos com a língua enquanto espera) Será que um cigarro vai quebrar a nossa continuidade?
Entrevistador: Não, não.
David Bowie: Obrigado. Estou a morrer por um! Quando começas a cantar tens mesmo que dar um pontapé no tabaco ou vai tudo ao ar! (dito num tom de voz rouco e engraçado) Tens que fazer isso? Fazemos um número com isso ou… oh! Só por curiosidade, vocês não têm problemas com o vídeo, têm?
Entrevistador: Não!
David Bowie: O vídeo do Day-In Day-Out?
Entrevistador: Não, a estreia mundial é hoje à noite.
David Bowie: Oh, ótimo, muito obrigado. Fiquei mesmo abalado com aquela cena…
Entrevistador: Sim. Vamos retomar a entrevista com o Frampton e o que é que a forma dele tocar tem que te agrada tanto…
David Bowie: A forma como ele toca deve-se muito às influências do rythm’n’blues que todos tínhamos em Inglaterra nos anos sessenta. Trata-se de uma abordagem inglesa aos blues. Que produziu os Claptons, ou seja, a verdade é que alguns dos melhores guitarristas de blues nasceram em Inglaterra. E sempre achei que o Peter era um deles. E ele perdeu-se pelo caminho, estás a ver, o (Jeff) Beck estava a granjear reputação, o (Eric) Clapton e todos os outros e nada aconteceu ao Peter, à parte aquela (imita o som) coisa da caixa de voz. E ele é o tipo de guitarrista com quem sempre me senti melhor a tocar. O (Mick) Ronson era o género de guitarrista com quem gostava de trabalhar porque tem a ver com a música americana, mas tocava com uma abordagem inglesa e é precisamente isso que aprecio na forma de tocar do Peter. Também é extremamente aberto a ideias novas e sou, inclusive, capaz de afirmar que irei trabalhar com ele em todo o tipo de novas abordagens ao que podemos fazer com o seu estilo de guitarra no meu material.
Entrevistador. Okay, ótimo. Passemos ao video do Day-In Day-Out… Qual era a ideia subjacente?
David Bowie: O tema do álbum parece dividir-se entre o romance individual, sentimentos pessoais de amor, e algum tipo de afirmação ou acusação a uma sociedade indiferente, particularmente uma resposta ao que acontece nas grandes cidades em termos dos sem-abrigo, pessoas que são completamente esquecidas em termos de educação ou de terem acesso a uma boa alimentação. Atualmente, há uma variedade enorme de posições políticas, sendo que as altas autoridades parecem preocupar-se muito mais com o relacionamento com a Rússia e o Médio Oriente e toda a ideia do que acontece em casa, nas ruas, com a população local, é varrida para debaixo do tapete. Eu não sou conscientemente… prolífico em termos de afirmações didáticas, ou seja, eu deixaria mais isso para bandas como os Clash ou para o (Bob) Dylan ou o modo como o (John) Lennon trabalharia as canções. As minhas canções tendem muito mais para uma abordagem impressionista, quase surrealista, a uma afirmação. Mas esse é o corpo do álbum, é esse o tipo de sentido que eu queria transmitir e Day-In Day-Out, sobretudo, lidava com alguém numa posição de preconceito, uma posição em que não parece restar qualquer tipo de esperança, ganhar dinheiro é impossível, é impossível obter uma boa educação e o tipo de coisas a que, infelizmente, as pessoas têm que recorrer para seguir em frente e, no fim, quando todas as cartas estão em cima da mesa, tudo continua… horrível! Quando se pensa que se chegou ao fundo, as coisas ainda podem piorar. E é como se não existisse escapatória. Portanto, é mais ou menos… está a fazer sentido?... é mais ou menos essa a minha abordagem a essa canção e é efetivamente acerca dos efeitos de uma sociedade indiferente.
Entrevistador: E o clip tem dois finais diferentes…
David Bowie: (pondera) Que eu saiba não, tanto quanto eu saiba só tem um final.
Entrevistador: Porque são os cubos, porque há um deles que diz fuck ou algo assim e o outro diz luck…
David Bowie: Ah, sim. Achámos que era, quer dizer, achámos que podíamos tentar… quando a máquina demolidora chega pela janela, na primeira versão que filmámos, o miúdo está a pôr o seu último cubo no buraco. Ah! Estás a ver, bestial!, no fim de contas é mesmo disto que precisamos. Mas sabíamos que, sendo as coisas nos media como são, como queríamos que passassem aquilo, pusemos a letra “l” e ficou luck, o que, de certo modo, até quase que é melhor: penso que, provavelmente, estamos a distribuir ambas as versões e cabe às estações decidir que versão preferem. Alguns países como a Itália e a França, claro, não têm problemas e hão de passar o original. Mas os americanos, sabes, têm os seus problemas nessa área, portanto… que é que vamos fazer? Porque não estão habituados a ver mulheres de sutiã e cuequinhas.
Entrevistador: Não há sutiãs, hã?
David Bowie: Nada de sutiãs.
Entrevistador: Então, gravaste um clip do Mondino?
David Bowie: Gravei, sim. Há uma canção de amor no álbum, chamada Never Let Me Down, que é, hmm… (voz rouca e engraçada) é a canção que dá nome ao álbum, é como uma peça mesmo romântica, eu deliro com esse tipo de coisas. E achei que seria, que ele seria mesmo ideal… não estou habituado a entregar tão inteiramente a minha autoridade num vídeo a alguém porque normalmente colaboro intensamente com quem quer que esteja a trabalhar no vídeo. Elaboro eu mesmo a storyboard, normalmente sou eu mesmo a conceber o vídeo e então o Julien Temple, ou anteriormente o David Mamet, que trabalharam comigo no sentido de obtermos o melhor visual na minha abordagem do vídeo… mas com o (Jean-Baptiste) Mondino… ele trabalha nisto, é uma outra dimensão… O tipo é tão francês, um romântico de tal calibre, em termos de realização não consigo sequer aproximar-me dele, pelo que lhe entreguei tudo e coloquei-me mesmo nas mãos dele para esse vídeo. Mas é muito bonito, adorável. E é algo que eu nunca seria capaz de fazer, nunca conseguiria fazer algo assim.
Entrevistador: Porque a canção é muito à maneira do (John) Lennon. Pergunto-me o que é que o John Lennon te disse acerca de como gravar canções que te marcou tanto…
David Bowie: Falámos sobre… Bom, as duas coisas de que me lembro perfeitamente são… Bem, antes de mais, o John era um contador de histórias extraordinário, quer dizer, conseguia contar histórias sem parar. Mas era muito hábil a manter as coisas curtas e simples e a deixar de lado as tretas e ir direito ao que interessava com excelentes observações rápidas e inteligentes. Era um rei desse tipo de observações, sim, fazia observações excecionais. Mas as duas coisas fundamentais de que me lembro, que ele disse sobre a escrita de canções, quando nos encontrámos pelas primeiras vezes no início dos anos setenta, ele disse: “Que é que achas do segundo verso?”. E eu perguntei: “Gostas desta cena do glam rock?”. E ele respondeu: “Sim, é porreiro. Bom, não passa de rock’n’roll com baton, certo?”. (risos) Tinha tanta razão! Hum… até certo ponto. E, mais tarde, estávamos a falar de canções e ele disse: “Sabes, basicamente, o que precisas de fazer com uma canção é dizer o que pensas, acrescentar-lhe um ritmo e um backbeat e é isso”. Eu percebi… Não levo isso mesmo à letra porque a minha forma de trabalhar não é exatamente assim. Mas se me sinto encravado, se estou encostado ao canto com uma canção ou qualquer trabalho e se fiquei em branco e já não consigo abordá-la, regresso sempre àquilo que o John disse ou a coisas que o Brian Eno me disse, ele também me ajudou muito em termos de me ter alargado os horizontes enquanto autor e de ter alterado as ideias que eu tinha sobre como escrever canções.
Entrevistador: Hmm, como assim?
David Bowie: Como assim? Especialmente com o Brian, toda a ideia de usar o estúdio de gravação como um instrumento. De não pensar necessariamente que tenho que estar inteiramente preparado antes de entrar, que os acidentes ocorrem e que, por vezes, os acidentes planeados funcionam na perfeição. Se surgir uma má nota, podemos cobri-la várias vezes com outros instrumentos e, de repente, aquela nota transforma-se num arranjo fantástico. Esse é tipo de coisa que é mesmo, acho… O Brian é maravilhoso no que é óbvio. É capaz de dizer uma coisa óbvia, só que nunca antes tínhamos pensado nela.
Entrevistador: Ok, podemos falar um pouco acerca dos teus filmes? Interpretas tantos papéis diferentes e interrogo-me qual achas que é o fio condutor em todos eles…
David Bowie: Noventa por cento das vezes, só aceitei um papel se… antes de mais, se é um papel razoavelmente bom, mas sobretudo por causa do realizador. Porque queria ver como trabalhava e como era a sua química com a sua equipa, como combinava tudo. Na verdade, isso aplica-se a todos os realizadores com quem trabalhei. Esse é um fio condutor. Fios condutores em termos de personagens, não sei. Acho que gosto de personagens que sejam um pouco bizarras.
Entrevistador: Que personagem se parece mais contigo e qual se parece menos?
David Bowie: A que se parece mais comigo… Acho que deve ser o cromo do Blue Jean. (risos) Acho que há um cromo a querer sair de mim! Senti-me bem com aquele gangsterzinho insidioso em Into the Night, aquele pequeno papel que desempenhei para o John Landis, sinto uma grande empatia com essa personagem. (risos) A personagem que menos se parece comigo, penso… espero, pelo menos, é a de The Hunger (Fome de Viver). Senti-me muito desconfortável com esse papel apesar de ter adorado participar num filme do Tony Scott. Achei o Tony incrível, mesmo incrível. E como o segundo filme dele foi o Top Gun, pensei “Porque é que me deste o teu primeiro filme, Tony?” (risos) Mas são coisas que acontecem… Na minha opinião, poderá acontecer o mesmo com o Julian, naquilo do Absolute Beginners, que eu adoro, acho que é um filmezinho excelente, uma abordagem muito inovadora à arte de filmar, mas há de acontecer o mesmo com o Julian. Na verdade, o Tony, ninguém lhe tocava depois de The Hunger. Durante anos! E então, de repente, filmou o Top Gun e, agora, o Beverly Hills II. E tornou-se na melhor coisa desde a invenção do pão fatiado na América. Vai acontecer o mesmo ao Julian. Eu sei. Talvez não o seu próximo filme, talvez nem o seguinte, talvez o que vier a seguir e, de repente, vai voltar a estar na ribalta. Os filmes são uma coisa tão inconstante… São mesmo.
Entrevistador: O que aprendeste com o Nicholas Roeg?
David Bowie: O Nick Roeg, eu acho, hmm… Continuo a achar que é o único realizador com quem trabalhei que, na soma das partes do que faz, tem algo de maior que cresce a partir de… O seu trabalho possui uma certa alquimia, uma certa química que nunca encontrei efetivamente com nenhum outro dos realizadores com quem tenha trabalhado. Há algum tipo de ingrediente mágico que ele adiciona. As combinações das suas filmagens e flashes rápidos que… quando constrói a sua imagética consegue transportar-nos para um outro mundo, cria uma área especial entre a realidade e a vida espiritual e coloca-nos algures no meio. O mais próximo dele que alguma vez encontrei, em termos de magia, foi David Lynch, de quem sou grande admirador. E o Alex Cox, gosto muito dele, o Alex Cox é mesmo espetacular.
Entrevistador: Ok. A tua aparência atual, o casaco de couro e tudo isso, é muito interessante. Porque é que tens esta indumentária atualmente?
David Bowie: Acho que temos que ser bastante enfáticos e sinceros e avançados face ao que queremos dizer e fazer no rock’n’roll, é uma expressão cultural do povo. Portanto, não acho muito ajuizado mostramo-nos demasiadamente espertos. Vou fazer uma tournée de rock’n’roll este ano. A única afirmação que posso fazer visualmente, com o vestuário, que não seja a moda, é esta. Isto é completamente fora da mo… não tem um tempo específico, sinto-me muito confortável assim, a fazer o que faço e a escrever a música que escrevo. E, claro, sempre usei este casaco! (risos)
Entrevistador: Ok. Agora, os Beatles. Até que ponto os Beatles influenciaram o teu aspeto e a tua forma de vestir na primeira metade dos anos sessenta?
David Bowie: Absolutamente nada. Eu não estive próximo dos Beatles até, não, nunca estive… Curtia mais os The Who e tudo isso. Ou seja, nos anos sessenta eu era muito mais um mod, entendes, tudo era… o cabelo e as tee-shirts Fred Perry e o tamanho das calças tinha que ser assim… Quer dizer, tudo era mais ou menos francês. Todo o look dos mods em Inglaterra nasceu da moda francesa que, na altura, era excelente para os rapazes. Moda francesa e italiana. Mas foi o look que os mods adotaram. Portanto, isso tinha muito mais a ver comigo do que os Beatles, os seus casacos e as suas coisas.
Entrevistador: Podemos começar por falar sobre o Andy Warhol um bocadinho?
David Bowie: Claro.
Entrevistador: Qual é a influência dele na tua vida e no teu trabalho?
David Bowie: Acho que foi uma influência sobretudo indireta. Ou seja, o facto de que ele estava a usar uma banda, os Velvet Underground, com os seus Exploding Plastic Inevitable faz pensar em, como é que se chamava? Era algo assim, não era? Agora, vais ser um Talking Head! (risos)
Entrevistador: Um cabeça concordante (nodding head).
David Bowie: Hmm, e foi mais ou menos porque estava no circuito que me interessei pelas coisas que ele fazia, achei que eram interessantes artisticamente, que ele dava passos ousados… Aplicava valores do design e das artes gráficas à arte séria e académica. Mas, na verdade, foi a inclusão dos Velvet Underground enquanto elementos da sua comitiva, da sua equipa. Ainda assim, só o conheci em finais dos anos 60, inícios dos anos 70, não me lembro do ano. Era uma situação mais ou menos incongruente… Ele estava na The Factory e havia um pico de atividade, toda a gente fazia qualquer coisa, falavam disto, falavam daquilo, e ele ficava muito quieto, como uma espécie de imagem letal de Svengali face a tudo aquilo. Tudo acontecia sem que parecesse que ele participasse no que quer que fosse. Era um tipo de pessoa extraordinariamente hipnótica.
Entrevistador: Ok.
David Bowie: Era muito, muito engraçado. Um homem muito espirituoso, mas demorava bastante até que o conseguíssemos fazer falar.
Entrevistador: Então, tudo isso aconteceu antes de teres escrito a canção sobre ele?
David Bowie: Sim, foi. Hmm, não, eu escrevi a canção do Hunky Dory antes de o ter conhecido. E, depois, toquei-lha na The Factory e ele disse: “Oh, sim. Fixe”. Essa foi a crítica que ele fez à canção. (risos) Não sei se alguma vez gostou dela ou não.
Entrevistador: Muito bem. Vamos passar à conferência de imprensa de hoje.
David Bowie: Sim.
Entrevistador: Porquê esta abordagem? Esta conferência de imprensa ao vivo em…
David Bowie: Bom, certa vez fiz o mesmo em Londres para anunciar a Serious Moonlight Tour e foi tão chato, quer dizer, tão rígido e não gostei de lá estar simplesmente a anunciar datas; o que eu quis, desta vez, foi fazer algo com que me sentisse bastante confortável e senti-me muito melhor numa situação de palco com a banda e, hmm, a tocar. E a sensação é como “Ei, estamos aqui. Nós somos assim: é música e é assim que soamos. Somos uma boa banda de bar!” (risos)
Entrevistador: Não, foi ótimo. É como uma antecipação da tournée, acho que muita gente ficou animada. Vais levar este formato de conferência de imprensa à Europa? Que cidades te interessam mais?
David Bowie: Para mim, pessoalmente, Madrid e Roma. Porque nunca toquei em nenhuma delas. Já estive em Espanha e na Itália mas apenas enquanto turista. Nunca lá toquei. Portanto, acho que vão ser as cidades mais estimulantes.
Entrevistador: Ok. Agora, o álbum parece muito mais roqueiro e um pouco mais ruidoso do que os últimos dois. Pergunto-me se estavas a pensar tocar ao vivo quando o gravaste…
David Bowie: Sem dúvida. Houve duas coisas que foram os ingredientes de tudo… O período da Serious Moonlight, o álbum do Let’s Dance, foi ótimo para mim, criou um som extraordinário, mas com a inclusão dos sopros e a suavidade de tudo aquilo, comecei a sentir-me desconfortável diante da ideia de continuar nessa direção porque me senti um pouco perdido no sentido em que me estava a aproximar de uma área à qual não sentia que pertencesse. Assim, ao chegar a este álbum, abordei-o da forma como me costumava sentir relativamente a… Quando nos perdemos regressamos sempre ao ponto de partida. Portanto, abordei este álbum com a ideia de que me costumava entusiasmar o facto de estar numa banda e tudo vai dar à guitarra. Foi assim que se tornou um álbum orientado para o som da guitarra e quando estava a escrever e a completar material, percebi que era um álbum incrível para levar em tournée e tudo se combinou e eu juntei-lhe a dose de energia necessária para um álbum de rock, para que pudesse funcionar bem no palco.
Entrevistador: Não tocaste nenhum instrumento nos teus dois últimos álbuns. Vais voltar a tocar?
David Bowie: Sim, voltei a tocar porque era uma parte integral do que costumava fazer e produzia o tipo de som que eu achava que tinha a ver comigo pelo facto de tocar algumas das coisas e porque dessa forma contribuía para os seus alicerces. Fossem as teclas ou um tipo específico de guitarra ritmo que toco, que não é como o Carlos Alomar mas funciona. Não é fantástico mas funciona. E então, eu queria regressar a isso e achei agradável estar de volta à banda.
Entrevistador: Este foi um álbum em que deste um grande espaço de manobra à banda ou foi muito dirigido por ti?
David Bowie: Não, este álbum foi muito, muito estruturado. Isto é, fiz demos de tudo antes de lá chegar, passei-as para todos e disse: “Quero que soe exatamente assim, só que melhor”. Porque toquei tudo, programei as caixas de ritmos e depois toquei o baixo e a guitarra, as teclas e as partes de sintetizador, tratei de tudo nas demos e depois passei-as ao Carlos e ao Erdal Kizilçai, que é baterista e baixista e toca o sintetizador e a trompete e as cordas no álbum, e também ao Peter (Frampton). E disse: “É para aí que vou, é esta abordagem que quero”. E as demos não são muito diferentes do álbum final, exceto pelo facto de que claro que está muito mais bem executado.
Entrevistador: Como é que o (Peter) Frampton chegou a este álbum?
David Bowie: Como anteriormente disse, já nos conhecemos há muito tempo, andámos juntos na escola e tudo. Ele era mais novo do que eu, teria uns 12, 13 anos quando eu tinha 15 e só esteve na escola algum tempo porque o pai dele fazia parte dos quadros, era o meu professor de arte, e acho que era bastante duro para o Pete ter o seu pai como professor da escola e, por isso, acabou por a deixar e inscrever-se noutra. Mas na altura em que ele ia ao bloco de artes, que era o sítio onde todos os apreciadores de música paravam, costumávamos levar guitarras para a escola (quando não estávamos a tocar, estávamos a tocar guitarra) e ele costumava chegar e tocar, era incrível, com 13 anos já era um grande guitarrista e, mais tarde, avançou, passou pelos The Herd e pelos Small Faces e eu estava sempre a encontrá-lo, tocámos várias vezes juntos… Certa vez, quando ele estava nos Humble Pie, servi-lhe de músico de suporte e depois, noutro gig, foi a vez de ele me ajudar e, com o passar do tempo, assisti a todas as coisas lamentáveis que lhe aconteceram nos anos setenta, isto é, estava-se a perder a noção de que era um grande guitarrista, de repente tornou-se um herói pop, era um rosto e a câmara passava-lhe diretamente dos dedos para a cara, e não passava disso. E ele detestava tudo aquilo e eu sabia como ele se sentia porque houve alturas em que a minha escrita se perdeu… mas acho que foi culpa minha porque estava a forçar tanto tudo o resto, a nossa teatralidade e tudo isso. E então, no ano passado tornou-se visível que o Peter tinha reencontrado o rumo, junto com a Stevie Nicks (referência ao regresso de Frampton, em 1986, como guitarrista convidado na Rock A Little Tour, de Stevie Nicks, dos Fleetwood Mac), e que queria mesmo tocar e eu pensei: “Caramba, ele é o guitarrista com quem gostaria de trabalhar no meu próximo álbum”, porque ele é mesmo bom. Então, telefonei-lhe e ele disse que adoraria estar no álbum. E, enquanto trabalhávamos no álbum, deu-se o inevitável e ele perguntou: “Vais levar isto para a estrada?”. E eu respondi: “Sim, achas que gostavas de vir?”. “Claro, seria porreiro!”. E eu disse: “Não te importavas de simplesmente fazeres parte da banda?”. E ele respondeu: “Não, gostava mesmo!”. E assim, ele tem uma oportunidade de mostrar o seu talento enquanto guitarrista e, inevitavelmente, há de partir sozinho no ano que vem. Com alguma sorte, as pessoas vão reconhecê-lo por aquilo que é, um excelente guitarrista. E, já agora, também um autor e cantor muito bom. Mas isto vai trazer a sua guitarra de volta à linha da frente.
Entrevistador: O que tem de especial a forma como ele toca? É a melodia ou algo mais?
David Bowie: É uma boa combinação de, hmm… porque o background musical dele é muito semelhante ao meu, uma espécie de consciência inglesa do R’n’B, com todas as coisas R’n’B que ele costumava tocar. Há uma certa dureza contida na sua forma de tocar que me agrada muito e é (o telefone soa) huh (o telefone continua a tocar) hmm…
Entrevistador: Vamos ter que fazer uma pequena pausa. Podias ficar nessa parte em que tinhas o nome do Peter na resposta?
David Bowie: Ah, claro. Sim, sim. Compreendo. Ok.
Entrevistador: Obrigado.
David Bowie: (dá estalos com a língua enquanto espera) Será que um cigarro vai quebrar a nossa continuidade?
Entrevistador: Não, não.
David Bowie: Obrigado. Estou a morrer por um! Quando começas a cantar tens mesmo que dar um pontapé no tabaco ou vai tudo ao ar! (dito num tom de voz rouco e engraçado) Tens que fazer isso? Fazemos um número com isso ou… oh! Só por curiosidade, vocês não têm problemas com o vídeo, têm?
Entrevistador: Não!
David Bowie: O vídeo do Day-In Day-Out?
Entrevistador: Não, a estreia mundial é hoje à noite.
David Bowie: Oh, ótimo, muito obrigado. Fiquei mesmo abalado com aquela cena…
Entrevistador: Sim. Vamos retomar a entrevista com o Frampton e o que é que a forma dele tocar tem que te agrada tanto…
David Bowie: A forma como ele toca deve-se muito às influências do rythm’n’blues que todos tínhamos em Inglaterra nos anos sessenta. Trata-se de uma abordagem inglesa aos blues. Que produziu os Claptons, ou seja, a verdade é que alguns dos melhores guitarristas de blues nasceram em Inglaterra. E sempre achei que o Peter era um deles. E ele perdeu-se pelo caminho, estás a ver, o (Jeff) Beck estava a granjear reputação, o (Eric) Clapton e todos os outros e nada aconteceu ao Peter, à parte aquela (imita o som) coisa da caixa de voz. E ele é o tipo de guitarrista com quem sempre me senti melhor a tocar. O (Mick) Ronson era o género de guitarrista com quem gostava de trabalhar porque tem a ver com a música americana, mas tocava com uma abordagem inglesa e é precisamente isso que aprecio na forma de tocar do Peter. Também é extremamente aberto a ideias novas e sou, inclusive, capaz de afirmar que irei trabalhar com ele em todo o tipo de novas abordagens ao que podemos fazer com o seu estilo de guitarra no meu material.
Entrevistador. Okay, ótimo. Passemos ao video do Day-In Day-Out… Qual era a ideia subjacente?
David Bowie: O tema do álbum parece dividir-se entre o romance individual, sentimentos pessoais de amor, e algum tipo de afirmação ou acusação a uma sociedade indiferente, particularmente uma resposta ao que acontece nas grandes cidades em termos dos sem-abrigo, pessoas que são completamente esquecidas em termos de educação ou de terem acesso a uma boa alimentação. Atualmente, há uma variedade enorme de posições políticas, sendo que as altas autoridades parecem preocupar-se muito mais com o relacionamento com a Rússia e o Médio Oriente e toda a ideia do que acontece em casa, nas ruas, com a população local, é varrida para debaixo do tapete. Eu não sou conscientemente… prolífico em termos de afirmações didáticas, ou seja, eu deixaria mais isso para bandas como os Clash ou para o (Bob) Dylan ou o modo como o (John) Lennon trabalharia as canções. As minhas canções tendem muito mais para uma abordagem impressionista, quase surrealista, a uma afirmação. Mas esse é o corpo do álbum, é esse o tipo de sentido que eu queria transmitir e Day-In Day-Out, sobretudo, lidava com alguém numa posição de preconceito, uma posição em que não parece restar qualquer tipo de esperança, ganhar dinheiro é impossível, é impossível obter uma boa educação e o tipo de coisas a que, infelizmente, as pessoas têm que recorrer para seguir em frente e, no fim, quando todas as cartas estão em cima da mesa, tudo continua… horrível! Quando se pensa que se chegou ao fundo, as coisas ainda podem piorar. E é como se não existisse escapatória. Portanto, é mais ou menos… está a fazer sentido?... é mais ou menos essa a minha abordagem a essa canção e é efetivamente acerca dos efeitos de uma sociedade indiferente.
Entrevistador: E o clip tem dois finais diferentes…
David Bowie: (pondera) Que eu saiba não, tanto quanto eu saiba só tem um final.
Entrevistador: Porque são os cubos, porque há um deles que diz fuck ou algo assim e o outro diz luck…
David Bowie: Ah, sim. Achámos que era, quer dizer, achámos que podíamos tentar… quando a máquina demolidora chega pela janela, na primeira versão que filmámos, o miúdo está a pôr o seu último cubo no buraco. Ah! Estás a ver, bestial!, no fim de contas é mesmo disto que precisamos. Mas sabíamos que, sendo as coisas nos media como são, como queríamos que passassem aquilo, pusemos a letra “l” e ficou luck, o que, de certo modo, até quase que é melhor: penso que, provavelmente, estamos a distribuir ambas as versões e cabe às estações decidir que versão preferem. Alguns países como a Itália e a França, claro, não têm problemas e hão de passar o original. Mas os americanos, sabes, têm os seus problemas nessa área, portanto… que é que vamos fazer? Porque não estão habituados a ver mulheres de sutiã e cuequinhas.
Entrevistador: Não há sutiãs, hã?
David Bowie: Nada de sutiãs.
Entrevistador: Então, gravaste um clip do Mondino?
David Bowie: Gravei, sim. Há uma canção de amor no álbum, chamada Never Let Me Down, que é, hmm… (voz rouca e engraçada) é a canção que dá nome ao álbum, é como uma peça mesmo romântica, eu deliro com esse tipo de coisas. E achei que seria, que ele seria mesmo ideal… não estou habituado a entregar tão inteiramente a minha autoridade num vídeo a alguém porque normalmente colaboro intensamente com quem quer que esteja a trabalhar no vídeo. Elaboro eu mesmo a storyboard, normalmente sou eu mesmo a conceber o vídeo e então o Julien Temple, ou anteriormente o David Mamet, que trabalharam comigo no sentido de obtermos o melhor visual na minha abordagem do vídeo… mas com o (Jean-Baptiste) Mondino… ele trabalha nisto, é uma outra dimensão… O tipo é tão francês, um romântico de tal calibre, em termos de realização não consigo sequer aproximar-me dele, pelo que lhe entreguei tudo e coloquei-me mesmo nas mãos dele para esse vídeo. Mas é muito bonito, adorável. E é algo que eu nunca seria capaz de fazer, nunca conseguiria fazer algo assim.
Entrevistador: Porque a canção é muito à maneira do (John) Lennon. Pergunto-me o que é que o John Lennon te disse acerca de como gravar canções que te marcou tanto…
David Bowie: Falámos sobre… Bom, as duas coisas de que me lembro perfeitamente são… Bem, antes de mais, o John era um contador de histórias extraordinário, quer dizer, conseguia contar histórias sem parar. Mas era muito hábil a manter as coisas curtas e simples e a deixar de lado as tretas e ir direito ao que interessava com excelentes observações rápidas e inteligentes. Era um rei desse tipo de observações, sim, fazia observações excecionais. Mas as duas coisas fundamentais de que me lembro, que ele disse sobre a escrita de canções, quando nos encontrámos pelas primeiras vezes no início dos anos setenta, ele disse: “Que é que achas do segundo verso?”. E eu perguntei: “Gostas desta cena do glam rock?”. E ele respondeu: “Sim, é porreiro. Bom, não passa de rock’n’roll com baton, certo?”. (risos) Tinha tanta razão! Hum… até certo ponto. E, mais tarde, estávamos a falar de canções e ele disse: “Sabes, basicamente, o que precisas de fazer com uma canção é dizer o que pensas, acrescentar-lhe um ritmo e um backbeat e é isso”. Eu percebi… Não levo isso mesmo à letra porque a minha forma de trabalhar não é exatamente assim. Mas se me sinto encravado, se estou encostado ao canto com uma canção ou qualquer trabalho e se fiquei em branco e já não consigo abordá-la, regresso sempre àquilo que o John disse ou a coisas que o Brian Eno me disse, ele também me ajudou muito em termos de me ter alargado os horizontes enquanto autor e de ter alterado as ideias que eu tinha sobre como escrever canções.
Entrevistador: Hmm, como assim?
David Bowie: Como assim? Especialmente com o Brian, toda a ideia de usar o estúdio de gravação como um instrumento. De não pensar necessariamente que tenho que estar inteiramente preparado antes de entrar, que os acidentes ocorrem e que, por vezes, os acidentes planeados funcionam na perfeição. Se surgir uma má nota, podemos cobri-la várias vezes com outros instrumentos e, de repente, aquela nota transforma-se num arranjo fantástico. Esse é tipo de coisa que é mesmo, acho… O Brian é maravilhoso no que é óbvio. É capaz de dizer uma coisa óbvia, só que nunca antes tínhamos pensado nela.
Entrevistador: Ok, podemos falar um pouco acerca dos teus filmes? Interpretas tantos papéis diferentes e interrogo-me qual achas que é o fio condutor em todos eles…
David Bowie: Noventa por cento das vezes, só aceitei um papel se… antes de mais, se é um papel razoavelmente bom, mas sobretudo por causa do realizador. Porque queria ver como trabalhava e como era a sua química com a sua equipa, como combinava tudo. Na verdade, isso aplica-se a todos os realizadores com quem trabalhei. Esse é um fio condutor. Fios condutores em termos de personagens, não sei. Acho que gosto de personagens que sejam um pouco bizarras.
Entrevistador: Que personagem se parece mais contigo e qual se parece menos?
David Bowie: A que se parece mais comigo… Acho que deve ser o cromo do Blue Jean. (risos) Acho que há um cromo a querer sair de mim! Senti-me bem com aquele gangsterzinho insidioso em Into the Night, aquele pequeno papel que desempenhei para o John Landis, sinto uma grande empatia com essa personagem. (risos) A personagem que menos se parece comigo, penso… espero, pelo menos, é a de The Hunger (Fome de Viver). Senti-me muito desconfortável com esse papel apesar de ter adorado participar num filme do Tony Scott. Achei o Tony incrível, mesmo incrível. E como o segundo filme dele foi o Top Gun, pensei “Porque é que me deste o teu primeiro filme, Tony?” (risos) Mas são coisas que acontecem… Na minha opinião, poderá acontecer o mesmo com o Julian, naquilo do Absolute Beginners, que eu adoro, acho que é um filmezinho excelente, uma abordagem muito inovadora à arte de filmar, mas há de acontecer o mesmo com o Julian. Na verdade, o Tony, ninguém lhe tocava depois de The Hunger. Durante anos! E então, de repente, filmou o Top Gun e, agora, o Beverly Hills II. E tornou-se na melhor coisa desde a invenção do pão fatiado na América. Vai acontecer o mesmo ao Julian. Eu sei. Talvez não o seu próximo filme, talvez nem o seguinte, talvez o que vier a seguir e, de repente, vai voltar a estar na ribalta. Os filmes são uma coisa tão inconstante… São mesmo.
Entrevistador: O que aprendeste com o Nicholas Roeg?
David Bowie: O Nick Roeg, eu acho, hmm… Continuo a achar que é o único realizador com quem trabalhei que, na soma das partes do que faz, tem algo de maior que cresce a partir de… O seu trabalho possui uma certa alquimia, uma certa química que nunca encontrei efetivamente com nenhum outro dos realizadores com quem tenha trabalhado. Há algum tipo de ingrediente mágico que ele adiciona. As combinações das suas filmagens e flashes rápidos que… quando constrói a sua imagética consegue transportar-nos para um outro mundo, cria uma área especial entre a realidade e a vida espiritual e coloca-nos algures no meio. O mais próximo dele que alguma vez encontrei, em termos de magia, foi David Lynch, de quem sou grande admirador. E o Alex Cox, gosto muito dele, o Alex Cox é mesmo espetacular.
Entrevistador: Ok. A tua aparência atual, o casaco de couro e tudo isso, é muito interessante. Porque é que tens esta indumentária atualmente?
David Bowie: Acho que temos que ser bastante enfáticos e sinceros e avançados face ao que queremos dizer e fazer no rock’n’roll, é uma expressão cultural do povo. Portanto, não acho muito ajuizado mostramo-nos demasiadamente espertos. Vou fazer uma tournée de rock’n’roll este ano. A única afirmação que posso fazer visualmente, com o vestuário, que não seja a moda, é esta. Isto é completamente fora da mo… não tem um tempo específico, sinto-me muito confortável assim, a fazer o que faço e a escrever a música que escrevo. E, claro, sempre usei este casaco! (risos)
Entrevistador: Ok. Agora, os Beatles. Até que ponto os Beatles influenciaram o teu aspeto e a tua forma de vestir na primeira metade dos anos sessenta?
David Bowie: Absolutamente nada. Eu não estive próximo dos Beatles até, não, nunca estive… Curtia mais os The Who e tudo isso. Ou seja, nos anos sessenta eu era muito mais um mod, entendes, tudo era… o cabelo e as tee-shirts Fred Perry e o tamanho das calças tinha que ser assim… Quer dizer, tudo era mais ou menos francês. Todo o look dos mods em Inglaterra nasceu da moda francesa que, na altura, era excelente para os rapazes. Moda francesa e italiana. Mas foi o look que os mods adotaram. Portanto, isso tinha muito mais a ver comigo do que os Beatles, os seus casacos e as suas coisas.