1998: Entrevista com Charlie Rose para o Charlie Rose Show, na estação norte-americana PBS, em 31 de março
Charlie Rose: Há mais de trinta anos que David Bowie tem vindo a desafiar os limites da expressão artística. Começou por se salientar nos anos 70 com a sua personagem de palco, flamejante e surreal, Ziggy Stardust. Nos anos 80 ascendeu ao superestrelato com dois álbuns de enorme sucesso, em particular Let’s Dance, de 1983. É conhecido como sendo um artista inovador e criativo que combina os mundos da música, do cinema e das artes plásticas. No ano passado, lançou-se no mundo editorial com o lançamento de 21, uma editora de arte independente. Tenho todo o gosto em tê-lo comigo para nos falar sobre a vida na música, no cinema e, agora, na edição de arte. Bem-vindo.
David Bowie: Boa noite, Charlie.
Charlie Rose: É bom ter-te de regresso.
David Bowie: Concordo.
Charlie Rose: Podemos fazer isto sem o Julian (Julian Schnabel, realizador de Basquiat, um filme de 1996 em que Bowie desempenha o papel de Andy Warhol. Acresce que Bowie tinha estado com Julian Schnabel no programa, em 1996, altura em que falaram sobretudo de arte e não sobre a carreira de Bowie)? Acho que podemos, não podemos? (risos)
David Bowie: Nunca o vamos fazer sem o Julian, ele vai estar sempre presente em espírito.
Charlie Rose: Deixa-me começar pelo início, porque quero seguir o teu percurso até aos dias de hoje… Sul de Londres. Sim?
David Bowie: Sim.
Charlie Rose: Bom, conta-me onde querias estar e o que te influenciou e o que te fez começar…
David Bowie: Quando andava na escola estava na área de artes e acho que tudo se encaminhava para que fosse um artista, um artista visual. E pintor. E um artista comercial. E durante uns seis meses, depois de ter deixado a escola, fui um artista comercial. Era o meu ganha-pão… Mas, à noite, tocava saxofone numa banda de rythm’n’blues. E cheguei à conclusão de que não gostava de fazer design de gabardinas e bolachas, umas bolachas que já não existem e que se chamavam Aids (Sida, em português, tratando-se da doença; ou “auxiliares”, já que se tratava de bolachas destinadas a quem não queria engordar).
Charlie Rose: Como é que se chamavam?
David Bowie: Chamavam-se Aids, as bolachas com que estávamos a trabalhar. Claro que foram descontinuadas. E descobri que ganhava o mesmo a tocar saxofone à noite e que era algo que me dava muito maior prazer, porque não recebia ordens de ninguém. E, assim, abandonei a arte comercial e mantive o saxofone. E uma coisa leva a outra.
Charlie Rose: Bom, durante algum tempo nos anos 60. Mas o (Elvis) Presley influenciou-te, o Little Richard…
David Bowie: O Little Richard, bastante. O Presley porque acho que, nos seus primeiros tempos, era um espírito indomável da música e mostrava despreocupação e foi, na verdade, uma revolta que lançou sobre a América e sobre toda a sociedade ocidental, por si só. O Ocidente branco, pelo menos. E o Little Richard e o Fats Domino, naturalmente, os primeiros rockers e, depois, coisas como o John Lee Hooker. E ainda, nos anos sessenta apaixonei-me por uma banda chamada Velvet Underground e acho que eles me apontaram o tipo de música que pretendia escrever. Não exatamente como a deles mas, de algum modo, deram-me o mote.
Charlie Rose: Andavas sempre a mudar de banda. Quero dizer, nunca vi uma lista de bandas tão extensa como a das bandas em que participaste…
David Bowie: Uma banda por semana… (risos)
Charlie Rose: Uma banda por semana…
David Bowie: Sim.
Charlie Rose: Tudo isso para quê? Apenas para seres um músico ou…
David Bowie: Sim, não estava muito decidido a cantar. Tocava saxofone e era o que queria fazer mas, certa noite, o nosso vocalista estava em baixo de forma e eu assumi a parte vocal e a coisa correu bem. A partir daí, mantive-me na voz e, mais tarde, senti-me insatisfeito com as músicas que tocávamos. Eu queria que escrevêssemos as nossas próprias canções e eles não queriam escrevê-las e acabaram por me expulsar da banda e então… Sabes, foram todas essas mudanças (referência a Changes/Mudanças, um tema de Hunky Dory, álbum de 1971). É um início muito estereotipado para qualquer um em Inglaterra. Mas o que é interessante é…
Charlie Rose: Sim?
David Bowie: … é a percentagem de gente no rock com algum tipo de antecedentes das artes por comparação com as bandas americanas, muitas das bandas americanas têm um tipo de background diferente, muitas vezes provêm do operariado e, provavelmente, terão crescido em cidades mais industriais…
Charlie Rose: Como o (Bruce) Springsteen, em New Jersey…
David Bowie: Um exemplo típico. Acho que na Grã-Bretanha havia efetivamente uma preferência por quem tivesse estudado… Ias para Artes para aprender a tocar guitarra melhor. Quer-me parecer… E tantos de nós acabámos em bandas de rock. E acho que isso transmitiu ao rock inglês o seu carácter, transmitiu-lhe esse estranho carácter caprichoso que fez de nós o que somos. Quero dizer, o meu fundo não é apenas rock, mas também vaudeville e a vanguarda, entendes, podes usar um nariz vermelho e despires-te em simultâneo.
Charlie Rose: Essa ideia de ti como um iconoclasta, essa ideia de te esforçares sempre no sentido de, como se diz, forçar os limites, de onde vem isso?
David Bowie: Não tenho a certeza que se trate de iconoclastia. Acho que o meu molde ideal é mais uma síntese do que qualquer outra coisa. Sempre apreciei a ideia da cibernética da nossa cultura, a forma como podemos selecionar vários caminhos e criar algo de novo. Espero, e acredito, que aquilo que faço é sobretudo algo de criativo nesse sentido… No sentido em que me parece bem irmos buscar algo à ópera ou às artes plásticas, ou ao underground, ou ao mainstream e produzir uma nova combinação que poderá ser uma forma mais completa de se descrever o modo como vivemos e criar a sensação de uma reviravolta cultural resultante do amalgamar dessas diferentes correntes. (num tom de voz divertido) Pouco importa, é isso que eu faço! Foi ou não isso que eu disse? E é isso que resume tudo! (Charlie Rose ri)
Charlie Rose: Uma das coisas que sempre disseram sobre ti é que te manténs atento ao que se passa com as pessoas, ao que há de novo…
David Bowie: Não consigo tirar os olhos deles. Sabes, tenho um incrível apetite pelo que fazemos e a forma como o fazemos e como o expressamos. Desde miúdo, sempre quis saber o que havia por aí, sempre quis estar a par do que acontecia.
Charlie Rose: Pensas em ti sobretudo como músico?
David Bowie: Não. Na verdade, acho que a ideia de ter que afirmar que sou algum tipo de músico é, para mim, um embaraço porque não acredito nisso de todo. Sempre senti que aquilo que faço é… Uso a música para me exprimir. Não acho que seja muito capaz enquanto músico e solto um pequeno suspiro de alívio de cada vez que invento algo que soe completo e que funcione como uma peça musical. Felizmente, parece que isso me acontece a toda a hora, não acho que se me seque a inspiração para escrever música, mas não me sinto um músico.
Charlie Rose: Não achas que tens esse talento?
David Bowie: Provavelmente porque não me tomo a sério enquanto músico. Sou muitíssimo interessado, talvez interessado demais para o meu próprio bem, mas interessa-me muito mais o cruzamento de coisas diferentes e a verdade é que não tenho… Tenho o limiar de atenção de um gafanhoto, o que resulta em ser muito difícil tornar-me um artesão. Acho que sou muito promíscuo e um faz-tudo – artisticamente, claro! (risos) Eu e a monogamia somos assim… (faz um gesto de proximidade com as mãos) A vida mudou, mudou juntamente com… atingiu um pico de maturidade, eu m-m-m-mudei (Ch-ch-ch-changed, referência ao tema Changes).
Charlie Rose, Somos bem comportados, não somos?
David Bowie: De certeza que somos. Sabemos que uma coisa é boa quando a vemos. (risos) É curioso como a vida muda, não é?
Charlie Rose: Não te arrependes de nada?
David Bowie: Na verdade, não me arrependo… Não me arrependo de nada.
Charlie Rose: Vivemos a vida…
David Bowie: Várias vezes!
Charlie Rose: Para nos podermos tornar naquilo que nos está destinado! Onde quer que a vida nos leve.
David Bowie: Muitos dos meus caminhos foram becos sem saída, mas… Soube que compraste um fato como o meu…
Charlie Rose: Pois comprei! Tens um como o meu?
David Bowie: Exatamente igual!
Charlie Rose: Quando vais ao banco?
David Bowie: Não, usei-o em The Hunger (Fome de Viver, filme de 1983, realizado por Tony Scott, no qual David Bowie desempenha o papel principal).
Charlie Rose: Será que li algo, um dia destes, sobre valeres 800 milhões de dólares?
David Bowie: 900 milhões de dólares.
Charlie Rose: Novecentos. Sim, é verdade?
David Bowie: Estou à espera do cheque! (risos)
Charlie Rose: Está enterrado no teu quintal, é lá que o guardas…
David Bowie: Ganhei tantos amigos novos desde que esse artigo foi publicado… Podes crer, onde quer que vá sinto que sou amado. Trata-se de lixo total, um disparate absoluto.
Charlie Rose: Ok, 800 milhões…
David Bowie: Nem nada que se pareça. Não faço ideia de onde é que foram buscar esse número. É simplesmente incrível!
Charlie Rose: Mas foste capaz de ganhar o dinheiro que…
David Bowie: Muito capaz, mas não o suficiente para ganhar 800 milhões.
Charlie Rose: Não o suficiente?
David Bowie: Não o suficiente. (risos)
Charlie Rose: Filmes… Uma longa lista de filmes.
David Bowie: Sim, gostei de os fazer.
Charlie Rose: Mas também não pensas em ti como ator?
David Bowie: Não, não exatamente. Na verdade, não de todo. E acho que é uma certa vaidade, quando nos oferecem um papel, se se trata de um realizador no qual temos verdadeiro interesse ou se achamos que tem uma forma nova de lidar com as coisas, torna-se muito tentador. Este ano, fiz um novo filme com uma companhia independente, um realizador novo, completamente novo, é o seu primeiro filme, quase toda a gente envolvida é estreante e a estrela é um músico britânico por quem nutro grande respeito, o Goldie. E é um pouco como o padrinho de um novo tipo de música que surgiu em Inglaterra nos últimos dez anos, o drum and bass. O filme narra a história da vida dos gangs em Liverpool, penso que em particular os gangs de várias raças e as tríades, há um conflito. É um empreendimento extraordinário e, até agora, parece ser um filme excelente. Acho que vai dar que falar quando sair a público, é um ótimo trabalho. Não fazia ideia… O Goldie perguntou-me se gostaria de representar com ele e eu não fazia ideia do que esperar. E quis fazê-lo porque gostava dele e dos tipos com quem estava. E aconteceu. Chama-se Everybody Loves Sunshine (realizado por Andrew Goth, estreou em 1999 e recebeu, nos Estados Unidos, o nome B.U.S.T.E.D.).
Charlie Rose: Mas a verdade é que afirmaste que os únicos filmes em que participavas eram aqueles cujo realizador te interessava…
David Bowie: Têm que ter algo com que eu possa sentir uma forte empatia, percebes…
Charlie Rose: O que é que achas que fazes melhor?
David Bowie: Hmm, sabes? Acho que gostava de ter sido como o Sting. E, enquanto professor (referência ao facto de Sting ter sido professor durante dois anos, na St. Paul’s First School, em Cramlington), gostava mesmo de o ter feito. (risos) O que realmente me entusiasma é poder apresentar coisas novas às pessoas. Adoro a sensação de apresentar uma temática nova… especialmente aos jovens, que talvez os estimule e os influencie a fazer algo. Sabes, abrir algum tipo de novo mundo. Gosto de levar as pessoas a galerias de arte e coisas piegas do género. Também adoro levá-las a museus. E é uma alegria que sempre tive, especialmente com o meu filho, tem sido espetacular poder fazê-lo… Levá-lo ao teatro, talvez uma semana, e depois a um clube de dança ou a um espetáculo de rock e, de seguida, a um museu de arte e… Tudo isso, é fantástico observarmos como alguém recolhe as mesmas influências e as combina à sua maneira. Porque me recordo que quando os outros faziam isso por mim, sempre achei que era uma dádiva, quando alguém me levava a algum lado ou me mostrava uma nova forma de fazer as coisas, sempre achei que era a melhor prenda que me podiam dar. E gosto de retribuir. Gosto de mostrar coisas assim aos outros. Tenho um site web chamado Bowieart.com. De momento, é um bocado uma fogueira de vaidades porque o material é todo meu, mas temos bastante informação sobre os livros da editora…
Charlie Rose: Sim, já lá chegaremos…
David Bowie: Além disso, quero salientar que em duas ou três semanas vamos começar a mostrar trabalhos de outros artistas. Artistas que considero muito bons e que realmente têm algo a dizer. E também nos estamos a expandir como um meio de facilitar a comunicação, com muitos mais artigos e vou convidar as pessoas que usam o site a contribuírem com as suas ideias e talvez galerias ou artistas ou trabalhos que tenham visto, para que nos escrevam e nos contem as suas experiências. Também espero chegar a um ponto em que possam descarregar trabalhos de artistas do site e interferir, manipulá-los e reenviá-los, o que considero um ótimo exemplo de interatividade, acho que manipular o trabalho de um artista é algo de excelente.
Charlie Rose: Tenho aqui uma revista (mostra a capa da revista, onde se lê “Modern Painters” – Pintores Modernos). Uma coisa que fazes pelos novos pintores é entrevistá-los…
David Bowie: Sim. Procuro manter-me fiel à ideia de não entrevistar ninguém que não sinta ser bastante bom.
Charlie Rose: Alguém de quem gostes ou por quem sintas curiosidade…
David Bowie: Sim, como sou aquilo a que se chama um entrevistador-celebridade, procuro usar isso no sentido de só entrevistar quem quero. Não é um trabalho como, sabes: “Vai entrevistá-lo!” Eu sugiro às pessoas…
Charlie Rose: Vais onde a curiosidade te leva…
David Bowie: Tenho que fazer uso dela.
Charlie Rose: As tuas pinturas… Vamos ver algumas delas.
David Bowie: Ok.
Charlie Rose: Há quanto tempo pintas?
David Bowie: Acho que tudo começou a efervescer, no sentido de tocar e cantar e pintar, mais ou menos ao mesmo tempo. Sabes, acho que começou por volta dos oito anos. Ao chegar aos dezoito ou dezanove, comecei a levar essas coisas mais a sério. E passou por altos e baixos… Curiosamente, quando a música começa a falhar o meu interesse… bom, há alturas em que sentimos que não temos o que é preciso, que não temos nada para exprimir, que as coisas correm mal, perdemos o norte, nessas alturas senti que a pintura assumia o controlo. Produzi muitíssimo nessas alturas. Mas costumo andar entre ambas as coisas. Costumava achar que se completavam muito bem.
Charlie Rose: Quer dizer que quando uma decai, a outra vem à tona…
David Bowie: Bom, sim, eu tinha uma certa tendência a lidar com os problemas na música transpondo-os para a pintura e parece que isso se tem vindo a perder mas…
Charlie Rose: Perdeste essa capacidade?
David Bowie: Sim, sim. Por alguma razão, as coisas parecem ter mudado.
Charlie Rose: Certo. Vamos ver algumas. Trata-se de imagens que foram descarregadas pelo nosso grupo do teu site web: www.bowieart.com. Ok, vamos ver a primeira… O que é? Poder-se-ia tratar do Iggy Pop?
David Bowie: Sem dúvida que se poderia tratar do Iggy Pop. É o Iggy Pop, em 1976, tal como o vi quando vivíamos em Berlim. Tínhamos acabado de nos mudar. Ambos tínhamos graves problemas com a droga e, para resolver essa situação, mudámo-nos para Berlim, a capital mundial da heroína! (Charlie Rose ri) Em retrospetiva não parece muito sensato.
Charlie Rose: Não, não me parece muito inteligente!
David Bowie: E esse é um retrato do Jim a ficar azul no seu apartamento de Berlim. (novo slide) Esse é um retrato de mim transformado no Rei Leão.
Charlie Rose: É de 1995.
David Bowie: Senti um bocado a pressão para o fazer porque sabia que ia haver um musical.
Charlie Rose: Quem influencia a tua pintura?
David Bowie: Muita gente me influenciou no sentido de não pintar! (risos)
Charlie Rose: Mas queremos poupá-los aos agradecimentos, não é?
David Bowie: Uma vez mais, não tenho qualquer tipo de lealdade a um estilo determinado. Num dia posso ser um completo minimalista e limitar-me a pintar um pau de branco e, no dia seguinte, prefiro ser bastante rebuscado e artístico e pintar algo como o retrato do Iggy Pop.
Charlie Rose: Fala-me na satisfação de completares um quadro em que te sintas envolvido, de que gostes bastante…
David Bowie: Para mim, muito honestamente, trata-se de acabá-lo para poder passar a outra coisa. É o passar por isso, o processo… Há qualquer coisa nisso que me põe os nervos em franja. O meu coração, a minha mente ficam… Não sei explicar, é uma sensação muito estranha. Também não é particularmente agradável, não posso dizer que goste da música ou da pintura nessa… Não é como o sexo ou algo do género, de que podes realmente desfrutar! (risos) É importante! Há qualquer coisa de volátil na motivação e… qualquer coisa que me irrita bastante, quer no processo de fazer música, quer nas artes visuais. Mas, sabes, acho que esse é um problema meu!
Charlie Rose: Não, vamos lidar com esse teu problema… (risos)
David Bowie: Mas se lidares com o meu problema posso não voltar a ser capaz de fazer essas coisas. Estás a ver, sou muito cauteloso relativamente às análises.
Charlie Rose: Sim, senhor. Mas deixa-me salientar que, conhecendo a tua história e a tua família e os teus antecedentes, sempre, mas sempre mostraste resistência a todas as sugestões. (dito de modo brincalhão e assertivo) Não te importas de olhar quando falo contigo? (risos)
David Bowie: Estou a olhar bem no fundo daqueles olhos! (aponta numa dada direção)
Charlie Rose: Estavas a olhar no fundo daqueles olhos… (risos)
David Bowie: Sim. De que é que estamos a falar? (risos)
Charlie Rose: Sempre, mas sempre resististe a qualquer ideia de que a tua criatividade nascesse de algum tipo de disfunção… ou loucura fora do comum…
David Bowie: Eu acho… Muitas vezes me interroguei se ser um artista de qualquer tipo, qualquer natureza, não seria um sinal de algum tipo de disfunção, de algum tipo de disfunção social. É extraordinário querermos expressar-nos assim e em termos de tal modo rarefeitos. Acho que é um bocado louco. Acho que a abordagem à vida mais saudável e racional consiste em fazer de tudo para sobreviver e criar um lar protetor e um ambiente acolhedor e de amor para a nossa família e dar-lhes de comer… É mais ou menos isso. Tudo o resto é extra. Toda a cultura é extra. A cultura é uma borla. Só precisamos de comer, não precisamos de pratos de uma cor particular, nem de cadeirões específicos, nem de nada do género. Quer dizer, qualquer coisa serve, mas insistimos em fabricar mil tipos de cadeiras diferentes, quinze tipos de pratos diferentes. É desnecessário e um sinal da parte racional do homem, acho. Deveríamos contentar-nos em recolher nozes (nuts = tomates, em sentido figurado). Não as minhas, se me permites acrescentar. (risos) Isso soou tão estranho… Deixa-me ver o próximo slide!
Charlie Rose: O próximo é um acrílico e colagem de computador em tela.
David Bowie: Sim, o que eu faço é pegar em…
Charlie Rose: É de 1997. Não estamos…
David Bowie: Sabes, esses agora são muito recentes. É esse o aspeto atual. Já não é tão expressionista, pois não? Há uma espécie de… Acho que estou a ser influenciado pelo que se chama bad painting, que está em voga. Se quiseres saber coisas sobre a bad painting, pergunta ao Charles Saatchi, já que ele comprou tudo o que havia em Inglaterra. Tudo o que havia de bad painting em Inglaterra, creio bem. Menos esse!
Charlie Rose: Guardou-os algures num armazém?
David Bowie: Nesta altura já os deve ter vendido. (risos) Sabes como ele é, o Charles!
Charlie Rose: Muito bem, o próximo slide…
David Bowie: Sim. A bad painting combinada com o expressionismo. Entendes, posso fazer tudo em combinações. Diz-me o que pretendes e eu faço. É o que isto é. Trata-se de uma série de pinturas de pessoas que entram e saem da minha vida e eu faço esquiços muito rápidos e tiro fotografias e polaroids e trabalho muito rapidamente e… De certo modo, acho que são retratos muito exatos de…
Charlie Rose: E este, quem é?
David Bowie: Este é apenas… É um camionista! (risos) Não há muitos camionistas na minha vida, Charlie! Mas não há dúvida de que este fez a diferença. Deve estar suspenso. É isso que lhe chamas, suspenso? Não é uma projeção, pois não?
Charlie Rose: Bom, acho que poderia ser uma projeção. Próximo slide!
David Bowie: Esse foi bastante, acho…
Charlie Rose: Um autorretrato.
David Bowie: Sim. Pertence a um conjunto de cinco pinturas que fiz como potenciais capas para o álbum Outside. E, na verdade, foi esta que escolhi para a capa.
Charlie Rose: Que aconteceu ao álbum?
David Bowie: Nada de especial. Saiu e achei-o muito interessante. Na verdade, devia estar agora a produzir uma peça teatral, com o Robert Wilson, para o ano 2000. Portanto, é suposto que nos encontremos se conseguirmos estar os dois no mesmo país e ao mesmo tempo.
Charlie Rose: Isso poderia ser agora, porque ele está em Nova Iorque.
David Bowie: A sério?
Charlie Rose: Sim.
David Bowie: Oh, vou matá-lo quando me telefonar.
Charlie Rose: Próximo slide.
David Bowie: Robert, onde quer que estejas, eu pago o telefonema. Hmm, esse quadro chama-se Ancestor Figure (Figura de Antepassado).
Charlie Rose: Foi inspirado por uma viagem que fizeste com a Iman, em 1995, à África do Sul.
David Bowie: Sim, fomos lá logo a seguir ao Dia da Liberdade e uma das histórias prevalecentes em África era que os fantasmas dos antepassados eram brancos. E aconteceu muitas vezes, na altura em que encontraram brancos pela primeira vez, que achassem que eram os antepassados da tribo. E então, peguei na ideia e fiz uma série de figuras de antepassados com o cabelo tipo Ziggy Stardust. (risos)
Charlie Rose: Tudo isso nunca desaparece, mantém-se presente de modo a que possas esticar-te para trás e trazê-lo de volta e empurrá-lo de volta para onde estava e avançar…
David Bowie: (mostra um pedaço de papel amarrotado) Posso mostrar-te uma coisa? Isto é… O Charlie tem este… É uma peça original de merchandise da minha tour do Ziggy Stardust. Imprimimos sete e este é um deles. (risos)
Charlie Rose: Descubram-no! Muito bem, o próximo slide. Temos mais dois e depois avançaremos…
David Bowie: Sim, acho melhor. Oh, esse é obviamente… É a mulher da série (Ancestor Figures).
Charlie Rose: Lembra-te da América. Se quiserem um, podem obtê-lo no website.
David Bowie: Estejam à vontade.
Charlie Rose: Certo. Próximo slide. Isto é o Bill T. Jones, é interessante.
David Bowie: Sim, o Bill T. Jones perguntou-me se desejaria contribuir com arte para uma beneficência que ia organizar para a full dance e este é um de três trabalhos, três litografias que ofereci. Voilà.
Charlie Rose: Algumas coisas sobre música. Tu… Como é que tem sentes relativamente ao Let’s Dance?
David Bowie: Tive uma aceitação extraordinária. Nunca tinha tido nada assim. Até então, sentia-me muito bem sendo uma espécie de figura de culto importante. Foi agradável, deu-me muita liberdade, sabia que podia contar com um público que seguiria virtualmente o que eu quisesse fazer, compreendes, e podia fazer o que quisesse. Mas a fase do Let’s Dance tornou-se praticamente um estorvo e um obstáculo. Ou seja, tornou-se efetivamente um estorvo e um obstáculo porque subitamente o meu rumo mudou, de repente estava concentrado em “quais são as expectativas do público agora?” e comecei talvez a escrever para um público, algo que nunca tinha feito antes. E aprendi que era algo de estúpido, pelo menos para mim. Voltei a escrever para mim mesmo e acho que o equilíbrio está… estou agora a alcançar o equilíbrio. Estou muito feliz com a forma como as coisas são, tanto musicalmente como na empatia que tenho com o público.
Charlie Rose: Earthling recebeu muito boas críticas…
David Bowie: É bem verdade. Fiquei muito satisfeito porque era um álbum sem qualquer espécie de compromissos. Muito pragmático. E fiquei mesmo contente com a forma como foi aceite, foi ótimo, bonito. É muito agradável quando isso acontece.
Charlie Rose: Começ… Quando começaste, foi no teu quinquagésimo aniversário? (referência ao concerto do 50º aniversário de David Bowie, a 9 de janeiro de 1997, um dia a seguir ao seu aniversário, no qual Bowie apresentou temas do álbum, no Madison Square Garden, em Nova Iorque, para um público de 15 mil fãs. Foi antes da Earthling Tour de 1997, a qual decorreu de 7 de junho de 1997 a 7 de novembro do mesmo ano)
David Bowie: 51 agora, Charlie… 51 agora! (risos)
Charlie Rose: Sim, mas não te sentes mal com isso. Quero dizer, pareces estar… ter chegado a algum tipo de aceitação. Suponho que não tenha sido tão difícil como os 40.
David Bowie: Os 40 foram bastante difíceis.
Charlie Rose: Porque não querias abandonar a ideia de que ainda tinhas 20…
David Bowie: Tudo estava mal. Não, foi mais por causa da minha ideia de mim mesmo enquanto músico, estava a escrever porcarias e nada corria bem artisticamente. Achei que a minha inspiração tinha secado, estava a tentar escrever para o público – foi exatamente a meio desse período: 1987 – e foi um tempo extraordinariamente mau para mim. E acho que tinha quase que… Foi quase como uma necessidade de me endireitar e dizer: “Ei, este tempo finito que me resta, gostava mesmo de o apreciar.” Portanto, sabes, “para com a autopiedade e todas as coisas desse género, endireita-te e toma algumas decisões sobre o que realmente queres da vida.” E acho que a primeira coisa que quis foi que todos os dias fossem excelentes. Então, dediquei-me a alterar tudo na minha vida. Tudo. E agora cheguei a um ponto em que espero não me sentir tão insatisfeito, mas sou, de certeza, um homem realizado. Sinto-me realizado romanticamente, musicalmente, artisticamente, adoro a minha família, estamos tão próximos! Tenho uma relação fantástica com o meu filho, nem te posso dizer até que ponto! Portanto, trata-se de algo que quero manter como uma prioridade permanente, quero que seja assim até a morte me fulminar. E isso seria fixe.
Charlie Rose: Ainda bem para ti. Muito bem, vamos fazer uma pausa e voltaremos, de seguida, para falarmos sobre edição e sobre o teu mais recente empreendimento: 21.
David Bowie: Por favor…
(a entrevista prossegue com David Bowie, Matthew Collings, um dos primeiros artistas apresentados, Karen Wright, editora do jornal de arte Modern Painters e Bernard Jacobson, dono de uma galeria de arte londrina, num debate sobre a 21)
David Bowie: Boa noite, Charlie.
Charlie Rose: É bom ter-te de regresso.
David Bowie: Concordo.
Charlie Rose: Podemos fazer isto sem o Julian (Julian Schnabel, realizador de Basquiat, um filme de 1996 em que Bowie desempenha o papel de Andy Warhol. Acresce que Bowie tinha estado com Julian Schnabel no programa, em 1996, altura em que falaram sobretudo de arte e não sobre a carreira de Bowie)? Acho que podemos, não podemos? (risos)
David Bowie: Nunca o vamos fazer sem o Julian, ele vai estar sempre presente em espírito.
Charlie Rose: Deixa-me começar pelo início, porque quero seguir o teu percurso até aos dias de hoje… Sul de Londres. Sim?
David Bowie: Sim.
Charlie Rose: Bom, conta-me onde querias estar e o que te influenciou e o que te fez começar…
David Bowie: Quando andava na escola estava na área de artes e acho que tudo se encaminhava para que fosse um artista, um artista visual. E pintor. E um artista comercial. E durante uns seis meses, depois de ter deixado a escola, fui um artista comercial. Era o meu ganha-pão… Mas, à noite, tocava saxofone numa banda de rythm’n’blues. E cheguei à conclusão de que não gostava de fazer design de gabardinas e bolachas, umas bolachas que já não existem e que se chamavam Aids (Sida, em português, tratando-se da doença; ou “auxiliares”, já que se tratava de bolachas destinadas a quem não queria engordar).
Charlie Rose: Como é que se chamavam?
David Bowie: Chamavam-se Aids, as bolachas com que estávamos a trabalhar. Claro que foram descontinuadas. E descobri que ganhava o mesmo a tocar saxofone à noite e que era algo que me dava muito maior prazer, porque não recebia ordens de ninguém. E, assim, abandonei a arte comercial e mantive o saxofone. E uma coisa leva a outra.
Charlie Rose: Bom, durante algum tempo nos anos 60. Mas o (Elvis) Presley influenciou-te, o Little Richard…
David Bowie: O Little Richard, bastante. O Presley porque acho que, nos seus primeiros tempos, era um espírito indomável da música e mostrava despreocupação e foi, na verdade, uma revolta que lançou sobre a América e sobre toda a sociedade ocidental, por si só. O Ocidente branco, pelo menos. E o Little Richard e o Fats Domino, naturalmente, os primeiros rockers e, depois, coisas como o John Lee Hooker. E ainda, nos anos sessenta apaixonei-me por uma banda chamada Velvet Underground e acho que eles me apontaram o tipo de música que pretendia escrever. Não exatamente como a deles mas, de algum modo, deram-me o mote.
Charlie Rose: Andavas sempre a mudar de banda. Quero dizer, nunca vi uma lista de bandas tão extensa como a das bandas em que participaste…
David Bowie: Uma banda por semana… (risos)
Charlie Rose: Uma banda por semana…
David Bowie: Sim.
Charlie Rose: Tudo isso para quê? Apenas para seres um músico ou…
David Bowie: Sim, não estava muito decidido a cantar. Tocava saxofone e era o que queria fazer mas, certa noite, o nosso vocalista estava em baixo de forma e eu assumi a parte vocal e a coisa correu bem. A partir daí, mantive-me na voz e, mais tarde, senti-me insatisfeito com as músicas que tocávamos. Eu queria que escrevêssemos as nossas próprias canções e eles não queriam escrevê-las e acabaram por me expulsar da banda e então… Sabes, foram todas essas mudanças (referência a Changes/Mudanças, um tema de Hunky Dory, álbum de 1971). É um início muito estereotipado para qualquer um em Inglaterra. Mas o que é interessante é…
Charlie Rose: Sim?
David Bowie: … é a percentagem de gente no rock com algum tipo de antecedentes das artes por comparação com as bandas americanas, muitas das bandas americanas têm um tipo de background diferente, muitas vezes provêm do operariado e, provavelmente, terão crescido em cidades mais industriais…
Charlie Rose: Como o (Bruce) Springsteen, em New Jersey…
David Bowie: Um exemplo típico. Acho que na Grã-Bretanha havia efetivamente uma preferência por quem tivesse estudado… Ias para Artes para aprender a tocar guitarra melhor. Quer-me parecer… E tantos de nós acabámos em bandas de rock. E acho que isso transmitiu ao rock inglês o seu carácter, transmitiu-lhe esse estranho carácter caprichoso que fez de nós o que somos. Quero dizer, o meu fundo não é apenas rock, mas também vaudeville e a vanguarda, entendes, podes usar um nariz vermelho e despires-te em simultâneo.
Charlie Rose: Essa ideia de ti como um iconoclasta, essa ideia de te esforçares sempre no sentido de, como se diz, forçar os limites, de onde vem isso?
David Bowie: Não tenho a certeza que se trate de iconoclastia. Acho que o meu molde ideal é mais uma síntese do que qualquer outra coisa. Sempre apreciei a ideia da cibernética da nossa cultura, a forma como podemos selecionar vários caminhos e criar algo de novo. Espero, e acredito, que aquilo que faço é sobretudo algo de criativo nesse sentido… No sentido em que me parece bem irmos buscar algo à ópera ou às artes plásticas, ou ao underground, ou ao mainstream e produzir uma nova combinação que poderá ser uma forma mais completa de se descrever o modo como vivemos e criar a sensação de uma reviravolta cultural resultante do amalgamar dessas diferentes correntes. (num tom de voz divertido) Pouco importa, é isso que eu faço! Foi ou não isso que eu disse? E é isso que resume tudo! (Charlie Rose ri)
Charlie Rose: Uma das coisas que sempre disseram sobre ti é que te manténs atento ao que se passa com as pessoas, ao que há de novo…
David Bowie: Não consigo tirar os olhos deles. Sabes, tenho um incrível apetite pelo que fazemos e a forma como o fazemos e como o expressamos. Desde miúdo, sempre quis saber o que havia por aí, sempre quis estar a par do que acontecia.
Charlie Rose: Pensas em ti sobretudo como músico?
David Bowie: Não. Na verdade, acho que a ideia de ter que afirmar que sou algum tipo de músico é, para mim, um embaraço porque não acredito nisso de todo. Sempre senti que aquilo que faço é… Uso a música para me exprimir. Não acho que seja muito capaz enquanto músico e solto um pequeno suspiro de alívio de cada vez que invento algo que soe completo e que funcione como uma peça musical. Felizmente, parece que isso me acontece a toda a hora, não acho que se me seque a inspiração para escrever música, mas não me sinto um músico.
Charlie Rose: Não achas que tens esse talento?
David Bowie: Provavelmente porque não me tomo a sério enquanto músico. Sou muitíssimo interessado, talvez interessado demais para o meu próprio bem, mas interessa-me muito mais o cruzamento de coisas diferentes e a verdade é que não tenho… Tenho o limiar de atenção de um gafanhoto, o que resulta em ser muito difícil tornar-me um artesão. Acho que sou muito promíscuo e um faz-tudo – artisticamente, claro! (risos) Eu e a monogamia somos assim… (faz um gesto de proximidade com as mãos) A vida mudou, mudou juntamente com… atingiu um pico de maturidade, eu m-m-m-mudei (Ch-ch-ch-changed, referência ao tema Changes).
Charlie Rose, Somos bem comportados, não somos?
David Bowie: De certeza que somos. Sabemos que uma coisa é boa quando a vemos. (risos) É curioso como a vida muda, não é?
Charlie Rose: Não te arrependes de nada?
David Bowie: Na verdade, não me arrependo… Não me arrependo de nada.
Charlie Rose: Vivemos a vida…
David Bowie: Várias vezes!
Charlie Rose: Para nos podermos tornar naquilo que nos está destinado! Onde quer que a vida nos leve.
David Bowie: Muitos dos meus caminhos foram becos sem saída, mas… Soube que compraste um fato como o meu…
Charlie Rose: Pois comprei! Tens um como o meu?
David Bowie: Exatamente igual!
Charlie Rose: Quando vais ao banco?
David Bowie: Não, usei-o em The Hunger (Fome de Viver, filme de 1983, realizado por Tony Scott, no qual David Bowie desempenha o papel principal).
Charlie Rose: Será que li algo, um dia destes, sobre valeres 800 milhões de dólares?
David Bowie: 900 milhões de dólares.
Charlie Rose: Novecentos. Sim, é verdade?
David Bowie: Estou à espera do cheque! (risos)
Charlie Rose: Está enterrado no teu quintal, é lá que o guardas…
David Bowie: Ganhei tantos amigos novos desde que esse artigo foi publicado… Podes crer, onde quer que vá sinto que sou amado. Trata-se de lixo total, um disparate absoluto.
Charlie Rose: Ok, 800 milhões…
David Bowie: Nem nada que se pareça. Não faço ideia de onde é que foram buscar esse número. É simplesmente incrível!
Charlie Rose: Mas foste capaz de ganhar o dinheiro que…
David Bowie: Muito capaz, mas não o suficiente para ganhar 800 milhões.
Charlie Rose: Não o suficiente?
David Bowie: Não o suficiente. (risos)
Charlie Rose: Filmes… Uma longa lista de filmes.
David Bowie: Sim, gostei de os fazer.
Charlie Rose: Mas também não pensas em ti como ator?
David Bowie: Não, não exatamente. Na verdade, não de todo. E acho que é uma certa vaidade, quando nos oferecem um papel, se se trata de um realizador no qual temos verdadeiro interesse ou se achamos que tem uma forma nova de lidar com as coisas, torna-se muito tentador. Este ano, fiz um novo filme com uma companhia independente, um realizador novo, completamente novo, é o seu primeiro filme, quase toda a gente envolvida é estreante e a estrela é um músico britânico por quem nutro grande respeito, o Goldie. E é um pouco como o padrinho de um novo tipo de música que surgiu em Inglaterra nos últimos dez anos, o drum and bass. O filme narra a história da vida dos gangs em Liverpool, penso que em particular os gangs de várias raças e as tríades, há um conflito. É um empreendimento extraordinário e, até agora, parece ser um filme excelente. Acho que vai dar que falar quando sair a público, é um ótimo trabalho. Não fazia ideia… O Goldie perguntou-me se gostaria de representar com ele e eu não fazia ideia do que esperar. E quis fazê-lo porque gostava dele e dos tipos com quem estava. E aconteceu. Chama-se Everybody Loves Sunshine (realizado por Andrew Goth, estreou em 1999 e recebeu, nos Estados Unidos, o nome B.U.S.T.E.D.).
Charlie Rose: Mas a verdade é que afirmaste que os únicos filmes em que participavas eram aqueles cujo realizador te interessava…
David Bowie: Têm que ter algo com que eu possa sentir uma forte empatia, percebes…
Charlie Rose: O que é que achas que fazes melhor?
David Bowie: Hmm, sabes? Acho que gostava de ter sido como o Sting. E, enquanto professor (referência ao facto de Sting ter sido professor durante dois anos, na St. Paul’s First School, em Cramlington), gostava mesmo de o ter feito. (risos) O que realmente me entusiasma é poder apresentar coisas novas às pessoas. Adoro a sensação de apresentar uma temática nova… especialmente aos jovens, que talvez os estimule e os influencie a fazer algo. Sabes, abrir algum tipo de novo mundo. Gosto de levar as pessoas a galerias de arte e coisas piegas do género. Também adoro levá-las a museus. E é uma alegria que sempre tive, especialmente com o meu filho, tem sido espetacular poder fazê-lo… Levá-lo ao teatro, talvez uma semana, e depois a um clube de dança ou a um espetáculo de rock e, de seguida, a um museu de arte e… Tudo isso, é fantástico observarmos como alguém recolhe as mesmas influências e as combina à sua maneira. Porque me recordo que quando os outros faziam isso por mim, sempre achei que era uma dádiva, quando alguém me levava a algum lado ou me mostrava uma nova forma de fazer as coisas, sempre achei que era a melhor prenda que me podiam dar. E gosto de retribuir. Gosto de mostrar coisas assim aos outros. Tenho um site web chamado Bowieart.com. De momento, é um bocado uma fogueira de vaidades porque o material é todo meu, mas temos bastante informação sobre os livros da editora…
Charlie Rose: Sim, já lá chegaremos…
David Bowie: Além disso, quero salientar que em duas ou três semanas vamos começar a mostrar trabalhos de outros artistas. Artistas que considero muito bons e que realmente têm algo a dizer. E também nos estamos a expandir como um meio de facilitar a comunicação, com muitos mais artigos e vou convidar as pessoas que usam o site a contribuírem com as suas ideias e talvez galerias ou artistas ou trabalhos que tenham visto, para que nos escrevam e nos contem as suas experiências. Também espero chegar a um ponto em que possam descarregar trabalhos de artistas do site e interferir, manipulá-los e reenviá-los, o que considero um ótimo exemplo de interatividade, acho que manipular o trabalho de um artista é algo de excelente.
Charlie Rose: Tenho aqui uma revista (mostra a capa da revista, onde se lê “Modern Painters” – Pintores Modernos). Uma coisa que fazes pelos novos pintores é entrevistá-los…
David Bowie: Sim. Procuro manter-me fiel à ideia de não entrevistar ninguém que não sinta ser bastante bom.
Charlie Rose: Alguém de quem gostes ou por quem sintas curiosidade…
David Bowie: Sim, como sou aquilo a que se chama um entrevistador-celebridade, procuro usar isso no sentido de só entrevistar quem quero. Não é um trabalho como, sabes: “Vai entrevistá-lo!” Eu sugiro às pessoas…
Charlie Rose: Vais onde a curiosidade te leva…
David Bowie: Tenho que fazer uso dela.
Charlie Rose: As tuas pinturas… Vamos ver algumas delas.
David Bowie: Ok.
Charlie Rose: Há quanto tempo pintas?
David Bowie: Acho que tudo começou a efervescer, no sentido de tocar e cantar e pintar, mais ou menos ao mesmo tempo. Sabes, acho que começou por volta dos oito anos. Ao chegar aos dezoito ou dezanove, comecei a levar essas coisas mais a sério. E passou por altos e baixos… Curiosamente, quando a música começa a falhar o meu interesse… bom, há alturas em que sentimos que não temos o que é preciso, que não temos nada para exprimir, que as coisas correm mal, perdemos o norte, nessas alturas senti que a pintura assumia o controlo. Produzi muitíssimo nessas alturas. Mas costumo andar entre ambas as coisas. Costumava achar que se completavam muito bem.
Charlie Rose: Quer dizer que quando uma decai, a outra vem à tona…
David Bowie: Bom, sim, eu tinha uma certa tendência a lidar com os problemas na música transpondo-os para a pintura e parece que isso se tem vindo a perder mas…
Charlie Rose: Perdeste essa capacidade?
David Bowie: Sim, sim. Por alguma razão, as coisas parecem ter mudado.
Charlie Rose: Certo. Vamos ver algumas. Trata-se de imagens que foram descarregadas pelo nosso grupo do teu site web: www.bowieart.com. Ok, vamos ver a primeira… O que é? Poder-se-ia tratar do Iggy Pop?
David Bowie: Sem dúvida que se poderia tratar do Iggy Pop. É o Iggy Pop, em 1976, tal como o vi quando vivíamos em Berlim. Tínhamos acabado de nos mudar. Ambos tínhamos graves problemas com a droga e, para resolver essa situação, mudámo-nos para Berlim, a capital mundial da heroína! (Charlie Rose ri) Em retrospetiva não parece muito sensato.
Charlie Rose: Não, não me parece muito inteligente!
David Bowie: E esse é um retrato do Jim a ficar azul no seu apartamento de Berlim. (novo slide) Esse é um retrato de mim transformado no Rei Leão.
Charlie Rose: É de 1995.
David Bowie: Senti um bocado a pressão para o fazer porque sabia que ia haver um musical.
Charlie Rose: Quem influencia a tua pintura?
David Bowie: Muita gente me influenciou no sentido de não pintar! (risos)
Charlie Rose: Mas queremos poupá-los aos agradecimentos, não é?
David Bowie: Uma vez mais, não tenho qualquer tipo de lealdade a um estilo determinado. Num dia posso ser um completo minimalista e limitar-me a pintar um pau de branco e, no dia seguinte, prefiro ser bastante rebuscado e artístico e pintar algo como o retrato do Iggy Pop.
Charlie Rose: Fala-me na satisfação de completares um quadro em que te sintas envolvido, de que gostes bastante…
David Bowie: Para mim, muito honestamente, trata-se de acabá-lo para poder passar a outra coisa. É o passar por isso, o processo… Há qualquer coisa nisso que me põe os nervos em franja. O meu coração, a minha mente ficam… Não sei explicar, é uma sensação muito estranha. Também não é particularmente agradável, não posso dizer que goste da música ou da pintura nessa… Não é como o sexo ou algo do género, de que podes realmente desfrutar! (risos) É importante! Há qualquer coisa de volátil na motivação e… qualquer coisa que me irrita bastante, quer no processo de fazer música, quer nas artes visuais. Mas, sabes, acho que esse é um problema meu!
Charlie Rose: Não, vamos lidar com esse teu problema… (risos)
David Bowie: Mas se lidares com o meu problema posso não voltar a ser capaz de fazer essas coisas. Estás a ver, sou muito cauteloso relativamente às análises.
Charlie Rose: Sim, senhor. Mas deixa-me salientar que, conhecendo a tua história e a tua família e os teus antecedentes, sempre, mas sempre mostraste resistência a todas as sugestões. (dito de modo brincalhão e assertivo) Não te importas de olhar quando falo contigo? (risos)
David Bowie: Estou a olhar bem no fundo daqueles olhos! (aponta numa dada direção)
Charlie Rose: Estavas a olhar no fundo daqueles olhos… (risos)
David Bowie: Sim. De que é que estamos a falar? (risos)
Charlie Rose: Sempre, mas sempre resististe a qualquer ideia de que a tua criatividade nascesse de algum tipo de disfunção… ou loucura fora do comum…
David Bowie: Eu acho… Muitas vezes me interroguei se ser um artista de qualquer tipo, qualquer natureza, não seria um sinal de algum tipo de disfunção, de algum tipo de disfunção social. É extraordinário querermos expressar-nos assim e em termos de tal modo rarefeitos. Acho que é um bocado louco. Acho que a abordagem à vida mais saudável e racional consiste em fazer de tudo para sobreviver e criar um lar protetor e um ambiente acolhedor e de amor para a nossa família e dar-lhes de comer… É mais ou menos isso. Tudo o resto é extra. Toda a cultura é extra. A cultura é uma borla. Só precisamos de comer, não precisamos de pratos de uma cor particular, nem de cadeirões específicos, nem de nada do género. Quer dizer, qualquer coisa serve, mas insistimos em fabricar mil tipos de cadeiras diferentes, quinze tipos de pratos diferentes. É desnecessário e um sinal da parte racional do homem, acho. Deveríamos contentar-nos em recolher nozes (nuts = tomates, em sentido figurado). Não as minhas, se me permites acrescentar. (risos) Isso soou tão estranho… Deixa-me ver o próximo slide!
Charlie Rose: O próximo é um acrílico e colagem de computador em tela.
David Bowie: Sim, o que eu faço é pegar em…
Charlie Rose: É de 1997. Não estamos…
David Bowie: Sabes, esses agora são muito recentes. É esse o aspeto atual. Já não é tão expressionista, pois não? Há uma espécie de… Acho que estou a ser influenciado pelo que se chama bad painting, que está em voga. Se quiseres saber coisas sobre a bad painting, pergunta ao Charles Saatchi, já que ele comprou tudo o que havia em Inglaterra. Tudo o que havia de bad painting em Inglaterra, creio bem. Menos esse!
Charlie Rose: Guardou-os algures num armazém?
David Bowie: Nesta altura já os deve ter vendido. (risos) Sabes como ele é, o Charles!
Charlie Rose: Muito bem, o próximo slide…
David Bowie: Sim. A bad painting combinada com o expressionismo. Entendes, posso fazer tudo em combinações. Diz-me o que pretendes e eu faço. É o que isto é. Trata-se de uma série de pinturas de pessoas que entram e saem da minha vida e eu faço esquiços muito rápidos e tiro fotografias e polaroids e trabalho muito rapidamente e… De certo modo, acho que são retratos muito exatos de…
Charlie Rose: E este, quem é?
David Bowie: Este é apenas… É um camionista! (risos) Não há muitos camionistas na minha vida, Charlie! Mas não há dúvida de que este fez a diferença. Deve estar suspenso. É isso que lhe chamas, suspenso? Não é uma projeção, pois não?
Charlie Rose: Bom, acho que poderia ser uma projeção. Próximo slide!
David Bowie: Esse foi bastante, acho…
Charlie Rose: Um autorretrato.
David Bowie: Sim. Pertence a um conjunto de cinco pinturas que fiz como potenciais capas para o álbum Outside. E, na verdade, foi esta que escolhi para a capa.
Charlie Rose: Que aconteceu ao álbum?
David Bowie: Nada de especial. Saiu e achei-o muito interessante. Na verdade, devia estar agora a produzir uma peça teatral, com o Robert Wilson, para o ano 2000. Portanto, é suposto que nos encontremos se conseguirmos estar os dois no mesmo país e ao mesmo tempo.
Charlie Rose: Isso poderia ser agora, porque ele está em Nova Iorque.
David Bowie: A sério?
Charlie Rose: Sim.
David Bowie: Oh, vou matá-lo quando me telefonar.
Charlie Rose: Próximo slide.
David Bowie: Robert, onde quer que estejas, eu pago o telefonema. Hmm, esse quadro chama-se Ancestor Figure (Figura de Antepassado).
Charlie Rose: Foi inspirado por uma viagem que fizeste com a Iman, em 1995, à África do Sul.
David Bowie: Sim, fomos lá logo a seguir ao Dia da Liberdade e uma das histórias prevalecentes em África era que os fantasmas dos antepassados eram brancos. E aconteceu muitas vezes, na altura em que encontraram brancos pela primeira vez, que achassem que eram os antepassados da tribo. E então, peguei na ideia e fiz uma série de figuras de antepassados com o cabelo tipo Ziggy Stardust. (risos)
Charlie Rose: Tudo isso nunca desaparece, mantém-se presente de modo a que possas esticar-te para trás e trazê-lo de volta e empurrá-lo de volta para onde estava e avançar…
David Bowie: (mostra um pedaço de papel amarrotado) Posso mostrar-te uma coisa? Isto é… O Charlie tem este… É uma peça original de merchandise da minha tour do Ziggy Stardust. Imprimimos sete e este é um deles. (risos)
Charlie Rose: Descubram-no! Muito bem, o próximo slide. Temos mais dois e depois avançaremos…
David Bowie: Sim, acho melhor. Oh, esse é obviamente… É a mulher da série (Ancestor Figures).
Charlie Rose: Lembra-te da América. Se quiserem um, podem obtê-lo no website.
David Bowie: Estejam à vontade.
Charlie Rose: Certo. Próximo slide. Isto é o Bill T. Jones, é interessante.
David Bowie: Sim, o Bill T. Jones perguntou-me se desejaria contribuir com arte para uma beneficência que ia organizar para a full dance e este é um de três trabalhos, três litografias que ofereci. Voilà.
Charlie Rose: Algumas coisas sobre música. Tu… Como é que tem sentes relativamente ao Let’s Dance?
David Bowie: Tive uma aceitação extraordinária. Nunca tinha tido nada assim. Até então, sentia-me muito bem sendo uma espécie de figura de culto importante. Foi agradável, deu-me muita liberdade, sabia que podia contar com um público que seguiria virtualmente o que eu quisesse fazer, compreendes, e podia fazer o que quisesse. Mas a fase do Let’s Dance tornou-se praticamente um estorvo e um obstáculo. Ou seja, tornou-se efetivamente um estorvo e um obstáculo porque subitamente o meu rumo mudou, de repente estava concentrado em “quais são as expectativas do público agora?” e comecei talvez a escrever para um público, algo que nunca tinha feito antes. E aprendi que era algo de estúpido, pelo menos para mim. Voltei a escrever para mim mesmo e acho que o equilíbrio está… estou agora a alcançar o equilíbrio. Estou muito feliz com a forma como as coisas são, tanto musicalmente como na empatia que tenho com o público.
Charlie Rose: Earthling recebeu muito boas críticas…
David Bowie: É bem verdade. Fiquei muito satisfeito porque era um álbum sem qualquer espécie de compromissos. Muito pragmático. E fiquei mesmo contente com a forma como foi aceite, foi ótimo, bonito. É muito agradável quando isso acontece.
Charlie Rose: Começ… Quando começaste, foi no teu quinquagésimo aniversário? (referência ao concerto do 50º aniversário de David Bowie, a 9 de janeiro de 1997, um dia a seguir ao seu aniversário, no qual Bowie apresentou temas do álbum, no Madison Square Garden, em Nova Iorque, para um público de 15 mil fãs. Foi antes da Earthling Tour de 1997, a qual decorreu de 7 de junho de 1997 a 7 de novembro do mesmo ano)
David Bowie: 51 agora, Charlie… 51 agora! (risos)
Charlie Rose: Sim, mas não te sentes mal com isso. Quero dizer, pareces estar… ter chegado a algum tipo de aceitação. Suponho que não tenha sido tão difícil como os 40.
David Bowie: Os 40 foram bastante difíceis.
Charlie Rose: Porque não querias abandonar a ideia de que ainda tinhas 20…
David Bowie: Tudo estava mal. Não, foi mais por causa da minha ideia de mim mesmo enquanto músico, estava a escrever porcarias e nada corria bem artisticamente. Achei que a minha inspiração tinha secado, estava a tentar escrever para o público – foi exatamente a meio desse período: 1987 – e foi um tempo extraordinariamente mau para mim. E acho que tinha quase que… Foi quase como uma necessidade de me endireitar e dizer: “Ei, este tempo finito que me resta, gostava mesmo de o apreciar.” Portanto, sabes, “para com a autopiedade e todas as coisas desse género, endireita-te e toma algumas decisões sobre o que realmente queres da vida.” E acho que a primeira coisa que quis foi que todos os dias fossem excelentes. Então, dediquei-me a alterar tudo na minha vida. Tudo. E agora cheguei a um ponto em que espero não me sentir tão insatisfeito, mas sou, de certeza, um homem realizado. Sinto-me realizado romanticamente, musicalmente, artisticamente, adoro a minha família, estamos tão próximos! Tenho uma relação fantástica com o meu filho, nem te posso dizer até que ponto! Portanto, trata-se de algo que quero manter como uma prioridade permanente, quero que seja assim até a morte me fulminar. E isso seria fixe.
Charlie Rose: Ainda bem para ti. Muito bem, vamos fazer uma pausa e voltaremos, de seguida, para falarmos sobre edição e sobre o teu mais recente empreendimento: 21.
David Bowie: Por favor…
(a entrevista prossegue com David Bowie, Matthew Collings, um dos primeiros artistas apresentados, Karen Wright, editora do jornal de arte Modern Painters e Bernard Jacobson, dono de uma galeria de arte londrina, num debate sobre a 21)