1999: Entrevista com Jeremy Paxman para o BBC Newsnight.
Jeremy Paxman: Estava a pensar na tua carreira e fico com a sensação de que houve uma constante reinvenção…
David Bowie: Por aí, sim.
Jeremy Paxman: Porque é que o fizeste?
David Bowie: Acho que, na verdade, me senti bastante bem com a ideia da reinvenção até ao início dos anos oitenta. Acho que surgiu, antes de mais, quando era um teenager. Eu acreditava que viria ser um criador de musicais. Queria sinceramente escrever musicais. Para o West End ou para a Broadway, tanto fazia, enquanto autor não via para lá disso. E acreditava mesmo que as pessoas iriam interpretar as minhas canções. E não era um artista de palco natural, não me sentia à vontade no palco. Nunca. E tinha criado esta personagem, Ziggy Stardust, que… pareceu-me que seria eu a interpretá-lo, já que não havia ninguém para interpretar os meus temas e que as hipóteses de conseguir levar um musical à cena eram muito diminutas. E, assim, tornei-me o Ziggy Stardust durante esse período. Sentia-me muito confortável a aparecer no palco como outra pessoa. E continuar a fazê-lo pareceu-me uma decisão racional. E, então, deixei-me levar pela ideia de criar personagem após personagem. E acho que, provavelmente, houve uma altura nos finais da década de setenta em que senti que a verdade é que as personagens me estavam a bloquear o caminho enquanto eu mesmo/autor. E decidi matá-las e começar a escrever para mim mesmo, enquanto cantor e autor. Não tenho a certeza de alguma vez ter sido bem-sucedido nisso porque levo sempre comigo algum nível de teatralidade quando subo ao palco, é assim que lido com o palco. Continuo a não me sentir confortável no palco.
Jeremy Paxman: Mas o próprio David Bowie é uma invenção. Pensas em ti mesmo como Bowie ou como David Jones, o rapaz do sul de Londres?
David Bowie: Cada vez menos como (alterando o sotaque de acordo com diferentes pronunciações do nome) Bowie, Bowie, Bowie. (risos) Já nem sei como é que o hei de pronunciar, perdi o rumo! Sempre achei que era Bowie (uma das pronúncias), achava que era um nome escocês, devia ser Bowie. Mas ninguém na Escócia o pronuncia assim. Eles dizem Bowie (uma pronúncia diferente)…
(passa uma parte de um vídeo de Ziggy Stardust ao vivo)
… foi uma descoberta, nos anos oitenta, acho, que grande parte dos meus entusiasmos – sempre fui uma pessoa muito curiosa e entusiástica, mais uma vez desde a adolescência - , que na verdade não me cabia identificar exatamente o significado disso. Tive simplesmente que aceitar o facto de que era alguém com um limiar de atenção muito curto, alguém que passaria muito rapidamente de uma coisa para a outra quando se fartasse da primeira. E passei a sentir-me bem com isso e deixei de tentar identificar-me ou de me perguntar quem era. Quanto menos me interrogasse acerca da minha identidade, sobre quem era, mais confortável me poderia sentir. Assim, agora não tenho qualquer noção de quem sou! (risos) Mas sinto-me extremamente feliz.
Jeremy Paxman: Mas achas o facto de estares na indústria da música tão interessante e cativante como…
David Bowie: Não tenho nada a ver com a indústria. Tenho mesmo tão pouco a ver com isso! A raiz da minha criatividade vem do que faço, de onde vou, coloco-me em lugares onde talvez nunca tenha estado ou onde sinta que existe alguma tensão… Na verdade, não consigo escrever ou produzir grande coisa se estiver num sítio relaxado. Preciso de conflitos à minha volta. Não necessariamente provocados por mim… Aprendi que isso é uma ideia particularmente má. Bom, não crio os meus próprios conflitos na minha vida. Acho que talvez o tenha feito um pouco quando era mais novo. Se as coisas estivessem a correr muito bem. Eu era levado a… Tendo uma personalidade aditiva, era levado a criar conflitos que produzissem a tensão de que precisava para escrever. Agora, acho que o posso fazer através da observação em vez de me encontrar seriamente envolvido numa confusão, estar calmo para escrever. (risos) Mas o lado de indústria das coisas… Na verdade… Acho que já nem sei o que essa palavra representa para mim.
Jeremy Paxman: Em termos pessoais, já não usas drogas…
David Bowie: Não, em absoluto…
Jeremy Paxman: E não bebes…
David Bowie: Também não bebo, não.
Jeremy Paxman: Nem um copo de vinho ou algo assim?
David Bowie: Não. Se recomeçasse, isso matar-me-ia.
Jeremy Paxman: Matar-te-ia como?
David Bowie: Sou um alcoólico. Portanto, recomeçar a beber seria o beijo da morte. A minha relação com os meus amigos, a minha família, toda a gente que me rodeia, tem sido tão boa há tantos anos que não faria nada que a pudesse destruir, entendes… É muito difícil alguém ter relacionamentos quando usa drogas ou quando bebe. Para mim, pessoalmente. E fechas-te, deixas de ser recetivo, tornas-te insensível… Todas as coisas horríveis que já ouviste da boca de todos os cantores pop. E tenho muita sorte por ter conseguido escapar a isso. Tem sido bom para mim, reavaliei a minha vida várias vezes.
(passa uma parte do vídeo de Let’s Dance)
Jeremy Paxman: Se estivesses a começar agora… Será que li algures que afirmaste que se tivesses dezanove anos não entrarias no negócio da música?
David Bowie: Acho que isso é, provavelmente, bastante verdadeiro. Penso que seria apenas um fã e colecionador de discos.
Jeremy Paxman: O que farias se…
David Bowie: Eu queria ser músico porque me parecia um ato de rebeldia, parecia subversivo, parecia-me que poderia contribuir para a mudança de algum modo. Era muito difícil ouvir música quando eu era mais novo, sabes? A música era mais ou menos sempre a mesma. E então, havia nisso como que um chamamento à luta… É isto que vai mudar as coisas, é um trabalho que realmente permite a fuga. As pessoas ainda ficavam horrorizadas se dissesses: “Estou no rock’n’roll”. Era um “Meu Deus!” Agora, é uma oportunidade de carreira e é a Internet que transporta a bandeira da subversão e, talvez, da rebeldia. E do caos e do niilismo e… (Jeremy Paxman faz uma expressão de alguma descrença) É, sim senhor! Esquece o elemento Microsoft… Os monopólios não têm um monopólio. Talvez dos programas…
Jeremy Paxman: O que nela te agrada é que toda a gente pode fazer ou dizer o que bem entender…
David Bowie: No meu ponto de vista, na posição em que me encontro, em virtude do facto de ser um cantor pop, e autor, acolho a ideia de que há um novo processo de desmistificação a decorrer entre o artista e o público. Acho que se olharmos para, digamos, esta última década, não houve uma única entidade, artista ou grupo, que tenha personificado ou que tenha sido a marca dos anos noventa. Já se estava a desvanecer um pouco nos anos oitenta e nos anos setenta ainda havia nitidamente artistas, nos anos sessenta eram os Beatles e o (Jimi) Hendrix e nos anos cinquenta havia o (Elvis) Presley. Agora, há subgrupos e géneros: é o hip hop, o girl power, um tipo de coisa comunitária, tem a ver com a comunidade, tem cada vez mais a ver com o público. Porque a razão para haver alguém que conduzisse os exércitos desapareceu em virtude de o vocabulário do rock ser demasiadamente conhecido. É uma moeda a que não falta significado, mas o certo é que agora não passa de um transmissor de informação, deixou de ser um transmissor da rebelião. E, como disse, a Internet assumiu esse lugar. Então, acho que se trata de uma área terrivelmente estimulante. Logo, de onde me encontro, sendo eu um artista, gosto de compreender a nova construção entre o artista e o público. Há uma quebra. Há uma… personificada, acho, pela cultura rave dos últimos anos, em que o público é, pelo menos, tão importante como quem estiver a atuar na rave. É quase como se o artista devesse acompanhar o público e o que o público faz. E essa sensação está a permear a música consideravelmente. E a permear a Internet.
Jeremy Paxman: O que é que se passa especificamente com a Internet? Quero dizer, qualquer pessoa pode dizer o que quiser…
David Bowie: Sim.
Jeremy Paxaman: Ou seja, qual é o resultado final disso? Parece-me que não tem nada de coeso em comparação com o que havia de coeso na revolução jovem da música…
David Bowie: Oh, mas isso… sem dúvida! Porque acho que nós… na altura, até pelo menos meados dos anos setenta, sentíamos que ainda vivíamos a coberto de uma sociedade criativa una e absoluta em que havia verdades e mentiras conhecidas e não havia nenhuma duplicidade ou pluralismo nas coisas em que acreditávamos. Isso começou rapidamente a ruir nos anos setenta e a ideia de dualidade no modo como vivemos… cada questão tem sempre duas, três, quatro, cinco facetas, a singularidade desapareceu. E isso, acho, originou um meio como a Internet, que estabelece e nos mostra sem margem de dúvida que vivemos em fragmentação total.
Jeremy Paxman: Não achas que algumas das coisas que se dizem sobre a Internet são um enorme exagero? Ou seja, quando inventaram o telefone as pessoas concluíram coisas espantosas…
David Bowie: Eu sei! O presidente, na época da invenção, foi ultrajante… Afirmou que antevia o dia, no futuro, em que cada cidade americana teria um telefone. Como é que ele teve tal ousadia? Total conversa fiada………….. Não, estás a ver, não estou de acordo, acho que a Internet… Acho que ainda nem vimos a ponta do icebergue. Acho que o potencial do que a Internet vai fazer à sociedade, bom e mau, é inimaginável. Acho que estamos à beira de algo emocionante e aterrador.
Jeremy Paxman: Mas não passa de uma ferramenta, certo?
David Bowie: Não, nada disso. Não, é uma forma de vida extraterrestre. (risos)
Jeremy Paxman: O que é que achas, quero dizer, quando pensas…
David Bowie: Haverá vida em Marte (Is there life on Mars? – referência a Life on Mars?, tema do album Hunky Dory, de 1971)? Sim, aterrou agora mesmo aqui! (sorriso)
Jeremy Paxman: Mas é… Não passa de um sistema de distribuição. Estás a falar de algo mais profundo…
David Bowie: Sim. Estou a falar em… há o contexto em si e o estado do conteúdo vai ser tão diferente do que quer que seja que possamos antecipar agora, sendo que a relação entre o utilizador e o fornecedor vai ser tão próxima que vai esmagar todas as ideias que temos sobre os media. Mas é algo que está a ocorrer em todas as formas! Está a acontecer nas artes visuais… Os avanços do início do século com indivíduos como o (Marcel) Duchamp que mostravam tanta urgência no que faziam e apresentavam, a ideia de que o trabalho artístico só está completo quando o público lhe acrescenta a sua interpretação e o que a obra de arte poderá ser é o espaço incerto no meio. O século XXI vai ter a ver precisamente com esse espaço incerto.
(passa uma parte de Thursday’s Child, do álbum Hours, ao vivo)
Jeremy Paxman: É suposto teres ganho trinta milhões com a venda do teu catálogo relativamente a ganhos futuros. Não chega uma altura em que deixa de fazer sentido ganhar mais dinheiro?
David Bowie: Sabes em quanto fica envolveres-te com a Internet? (risos) Acho que, possivelmente, a maior parte do dinheiro que ganho vai para… Aplico-o em algum projeto novo. Claro que, tendo as minhas origens na classe trabalhadora, também sinto que nunca há o suficiente para deixar à minha família. Assim, há uma espécie de instinto de sobrevivência que… Ok, eu poderia perfeitamente… Tudo bem, podia deixar o que tenho a todos os filhos do passado e do futuro e toda a gente ficaria bem. No entanto, também gostaria de iniciar uma nova empresa na Internet, pelo que vou precisar de mais algum… Portanto, é um bocado, hmm… Continuo a semear. Não sou um comprador de coisas. Acho que a única coisa que adquiro de modo viciante e obsessivo é arte, percebes? Não sou um homem de casas ou de automóveis. O único carro bom que alguma vez comprei foi um e-type de 1967 (Jaguar). Um e meio e essa é a razão pela qual… (risos) … ficaria com meio. E não tenho coisas, não tenho um avião, não tenho… (dito num tom de voz queixoso e brincalhão) Oh, mas não tenho muitas coisas, Jeremy! Não compro coisas, prefiro… Tendo a encarar o dinheiro como o combustível para pôr o resto das coisas em movimento. Sinto-me mais confortável assim.
Jeremy Paxman: Sentes algum desejo de voltar para aqui (Reino Unido)?
David Bowie: Adorava regressar e vou fazê-lo. Ainda não decidimos quando, mas é um dado adquirido. As outras coisas que pretendo fazer nos próximos… diria, dois anos, poderão vir a surpreender as pessoas.
Jeremy Paxman: O que achas do Cool Britania (uma tendência britânica dos anos noventa, que incluiu clubes como o Ministry of Sound e o Megatripolis, assim como bandas como os Blur, os Oasis, os Suede, os Pulp e os Verve, entre outras coisas, simbolizando uma renovação do orgulho britânico)?
David Bowie: Oh, básico! É tão ridículo e cheio de clichés. E ineficaz, acho. Não penso que tenha realmente mudado… Acho que ajudou os media a encontrarem um modo de descrever este tempo. Mas não acho que ninguém, em lado algum, acredite nisso. Há o bom e o mau em tudo o que fazemos… Somos excelentes arquitetos, temos alguns ótimos artistas, artistas plásticos, e alguns artistas péssimos também. A música… Sempre fomos bons na música. Não somos uma verdadeira nação do rock, tudo o que fazemos no rock contém um sentimento de ironia. Sabemos que não somos os Americanos. Sabemos que o rock não brotou das nossas almas. Portanto, tal como sempre fazem, os britânicos procuram fazer algo que lhes dê um ar de presunção. E é nisso que somos bons. (sorriso)
Jeremy Paxman: Mas quando vês os políticos abraçar estrelas do rock, quero dizer, pessoalmente pego logo no meu revólver…
David Bowie: Bom, pelo menos, uso um par de sapatos de salto alto quando me encontro com um primeiro-ministro… (Jeremy Paxman ri) Continuo a desempenhar o meu papel. Ele nem reparou, sabes?
Jeremy Paxman: Bom, é o Tony Blair!
David Bowie: Hmm…
Jeremy Paxman: Ele não reparou que estavas com sa…
David Bowie: Usei sapatos femininos de salto alto e um belo casaco e uma gravata. Foi a última vez em que usei uma gravata! (sorri) Acho… Não, não foi! Usei uma gola de padre. Um belo fato preto, uma camisa preta, uma gola de padre e um par de sapatos de salto alto. E ele nem tugiu nem mugiu.
Jeremy Paxman: Muito obrigado.
David Bowie: Por aí, sim.
Jeremy Paxman: Porque é que o fizeste?
David Bowie: Acho que, na verdade, me senti bastante bem com a ideia da reinvenção até ao início dos anos oitenta. Acho que surgiu, antes de mais, quando era um teenager. Eu acreditava que viria ser um criador de musicais. Queria sinceramente escrever musicais. Para o West End ou para a Broadway, tanto fazia, enquanto autor não via para lá disso. E acreditava mesmo que as pessoas iriam interpretar as minhas canções. E não era um artista de palco natural, não me sentia à vontade no palco. Nunca. E tinha criado esta personagem, Ziggy Stardust, que… pareceu-me que seria eu a interpretá-lo, já que não havia ninguém para interpretar os meus temas e que as hipóteses de conseguir levar um musical à cena eram muito diminutas. E, assim, tornei-me o Ziggy Stardust durante esse período. Sentia-me muito confortável a aparecer no palco como outra pessoa. E continuar a fazê-lo pareceu-me uma decisão racional. E, então, deixei-me levar pela ideia de criar personagem após personagem. E acho que, provavelmente, houve uma altura nos finais da década de setenta em que senti que a verdade é que as personagens me estavam a bloquear o caminho enquanto eu mesmo/autor. E decidi matá-las e começar a escrever para mim mesmo, enquanto cantor e autor. Não tenho a certeza de alguma vez ter sido bem-sucedido nisso porque levo sempre comigo algum nível de teatralidade quando subo ao palco, é assim que lido com o palco. Continuo a não me sentir confortável no palco.
Jeremy Paxman: Mas o próprio David Bowie é uma invenção. Pensas em ti mesmo como Bowie ou como David Jones, o rapaz do sul de Londres?
David Bowie: Cada vez menos como (alterando o sotaque de acordo com diferentes pronunciações do nome) Bowie, Bowie, Bowie. (risos) Já nem sei como é que o hei de pronunciar, perdi o rumo! Sempre achei que era Bowie (uma das pronúncias), achava que era um nome escocês, devia ser Bowie. Mas ninguém na Escócia o pronuncia assim. Eles dizem Bowie (uma pronúncia diferente)…
(passa uma parte de um vídeo de Ziggy Stardust ao vivo)
… foi uma descoberta, nos anos oitenta, acho, que grande parte dos meus entusiasmos – sempre fui uma pessoa muito curiosa e entusiástica, mais uma vez desde a adolescência - , que na verdade não me cabia identificar exatamente o significado disso. Tive simplesmente que aceitar o facto de que era alguém com um limiar de atenção muito curto, alguém que passaria muito rapidamente de uma coisa para a outra quando se fartasse da primeira. E passei a sentir-me bem com isso e deixei de tentar identificar-me ou de me perguntar quem era. Quanto menos me interrogasse acerca da minha identidade, sobre quem era, mais confortável me poderia sentir. Assim, agora não tenho qualquer noção de quem sou! (risos) Mas sinto-me extremamente feliz.
Jeremy Paxman: Mas achas o facto de estares na indústria da música tão interessante e cativante como…
David Bowie: Não tenho nada a ver com a indústria. Tenho mesmo tão pouco a ver com isso! A raiz da minha criatividade vem do que faço, de onde vou, coloco-me em lugares onde talvez nunca tenha estado ou onde sinta que existe alguma tensão… Na verdade, não consigo escrever ou produzir grande coisa se estiver num sítio relaxado. Preciso de conflitos à minha volta. Não necessariamente provocados por mim… Aprendi que isso é uma ideia particularmente má. Bom, não crio os meus próprios conflitos na minha vida. Acho que talvez o tenha feito um pouco quando era mais novo. Se as coisas estivessem a correr muito bem. Eu era levado a… Tendo uma personalidade aditiva, era levado a criar conflitos que produzissem a tensão de que precisava para escrever. Agora, acho que o posso fazer através da observação em vez de me encontrar seriamente envolvido numa confusão, estar calmo para escrever. (risos) Mas o lado de indústria das coisas… Na verdade… Acho que já nem sei o que essa palavra representa para mim.
Jeremy Paxman: Em termos pessoais, já não usas drogas…
David Bowie: Não, em absoluto…
Jeremy Paxman: E não bebes…
David Bowie: Também não bebo, não.
Jeremy Paxman: Nem um copo de vinho ou algo assim?
David Bowie: Não. Se recomeçasse, isso matar-me-ia.
Jeremy Paxman: Matar-te-ia como?
David Bowie: Sou um alcoólico. Portanto, recomeçar a beber seria o beijo da morte. A minha relação com os meus amigos, a minha família, toda a gente que me rodeia, tem sido tão boa há tantos anos que não faria nada que a pudesse destruir, entendes… É muito difícil alguém ter relacionamentos quando usa drogas ou quando bebe. Para mim, pessoalmente. E fechas-te, deixas de ser recetivo, tornas-te insensível… Todas as coisas horríveis que já ouviste da boca de todos os cantores pop. E tenho muita sorte por ter conseguido escapar a isso. Tem sido bom para mim, reavaliei a minha vida várias vezes.
(passa uma parte do vídeo de Let’s Dance)
Jeremy Paxman: Se estivesses a começar agora… Será que li algures que afirmaste que se tivesses dezanove anos não entrarias no negócio da música?
David Bowie: Acho que isso é, provavelmente, bastante verdadeiro. Penso que seria apenas um fã e colecionador de discos.
Jeremy Paxman: O que farias se…
David Bowie: Eu queria ser músico porque me parecia um ato de rebeldia, parecia subversivo, parecia-me que poderia contribuir para a mudança de algum modo. Era muito difícil ouvir música quando eu era mais novo, sabes? A música era mais ou menos sempre a mesma. E então, havia nisso como que um chamamento à luta… É isto que vai mudar as coisas, é um trabalho que realmente permite a fuga. As pessoas ainda ficavam horrorizadas se dissesses: “Estou no rock’n’roll”. Era um “Meu Deus!” Agora, é uma oportunidade de carreira e é a Internet que transporta a bandeira da subversão e, talvez, da rebeldia. E do caos e do niilismo e… (Jeremy Paxman faz uma expressão de alguma descrença) É, sim senhor! Esquece o elemento Microsoft… Os monopólios não têm um monopólio. Talvez dos programas…
Jeremy Paxman: O que nela te agrada é que toda a gente pode fazer ou dizer o que bem entender…
David Bowie: No meu ponto de vista, na posição em que me encontro, em virtude do facto de ser um cantor pop, e autor, acolho a ideia de que há um novo processo de desmistificação a decorrer entre o artista e o público. Acho que se olharmos para, digamos, esta última década, não houve uma única entidade, artista ou grupo, que tenha personificado ou que tenha sido a marca dos anos noventa. Já se estava a desvanecer um pouco nos anos oitenta e nos anos setenta ainda havia nitidamente artistas, nos anos sessenta eram os Beatles e o (Jimi) Hendrix e nos anos cinquenta havia o (Elvis) Presley. Agora, há subgrupos e géneros: é o hip hop, o girl power, um tipo de coisa comunitária, tem a ver com a comunidade, tem cada vez mais a ver com o público. Porque a razão para haver alguém que conduzisse os exércitos desapareceu em virtude de o vocabulário do rock ser demasiadamente conhecido. É uma moeda a que não falta significado, mas o certo é que agora não passa de um transmissor de informação, deixou de ser um transmissor da rebelião. E, como disse, a Internet assumiu esse lugar. Então, acho que se trata de uma área terrivelmente estimulante. Logo, de onde me encontro, sendo eu um artista, gosto de compreender a nova construção entre o artista e o público. Há uma quebra. Há uma… personificada, acho, pela cultura rave dos últimos anos, em que o público é, pelo menos, tão importante como quem estiver a atuar na rave. É quase como se o artista devesse acompanhar o público e o que o público faz. E essa sensação está a permear a música consideravelmente. E a permear a Internet.
Jeremy Paxman: O que é que se passa especificamente com a Internet? Quero dizer, qualquer pessoa pode dizer o que quiser…
David Bowie: Sim.
Jeremy Paxaman: Ou seja, qual é o resultado final disso? Parece-me que não tem nada de coeso em comparação com o que havia de coeso na revolução jovem da música…
David Bowie: Oh, mas isso… sem dúvida! Porque acho que nós… na altura, até pelo menos meados dos anos setenta, sentíamos que ainda vivíamos a coberto de uma sociedade criativa una e absoluta em que havia verdades e mentiras conhecidas e não havia nenhuma duplicidade ou pluralismo nas coisas em que acreditávamos. Isso começou rapidamente a ruir nos anos setenta e a ideia de dualidade no modo como vivemos… cada questão tem sempre duas, três, quatro, cinco facetas, a singularidade desapareceu. E isso, acho, originou um meio como a Internet, que estabelece e nos mostra sem margem de dúvida que vivemos em fragmentação total.
Jeremy Paxman: Não achas que algumas das coisas que se dizem sobre a Internet são um enorme exagero? Ou seja, quando inventaram o telefone as pessoas concluíram coisas espantosas…
David Bowie: Eu sei! O presidente, na época da invenção, foi ultrajante… Afirmou que antevia o dia, no futuro, em que cada cidade americana teria um telefone. Como é que ele teve tal ousadia? Total conversa fiada………….. Não, estás a ver, não estou de acordo, acho que a Internet… Acho que ainda nem vimos a ponta do icebergue. Acho que o potencial do que a Internet vai fazer à sociedade, bom e mau, é inimaginável. Acho que estamos à beira de algo emocionante e aterrador.
Jeremy Paxman: Mas não passa de uma ferramenta, certo?
David Bowie: Não, nada disso. Não, é uma forma de vida extraterrestre. (risos)
Jeremy Paxman: O que é que achas, quero dizer, quando pensas…
David Bowie: Haverá vida em Marte (Is there life on Mars? – referência a Life on Mars?, tema do album Hunky Dory, de 1971)? Sim, aterrou agora mesmo aqui! (sorriso)
Jeremy Paxman: Mas é… Não passa de um sistema de distribuição. Estás a falar de algo mais profundo…
David Bowie: Sim. Estou a falar em… há o contexto em si e o estado do conteúdo vai ser tão diferente do que quer que seja que possamos antecipar agora, sendo que a relação entre o utilizador e o fornecedor vai ser tão próxima que vai esmagar todas as ideias que temos sobre os media. Mas é algo que está a ocorrer em todas as formas! Está a acontecer nas artes visuais… Os avanços do início do século com indivíduos como o (Marcel) Duchamp que mostravam tanta urgência no que faziam e apresentavam, a ideia de que o trabalho artístico só está completo quando o público lhe acrescenta a sua interpretação e o que a obra de arte poderá ser é o espaço incerto no meio. O século XXI vai ter a ver precisamente com esse espaço incerto.
(passa uma parte de Thursday’s Child, do álbum Hours, ao vivo)
Jeremy Paxman: É suposto teres ganho trinta milhões com a venda do teu catálogo relativamente a ganhos futuros. Não chega uma altura em que deixa de fazer sentido ganhar mais dinheiro?
David Bowie: Sabes em quanto fica envolveres-te com a Internet? (risos) Acho que, possivelmente, a maior parte do dinheiro que ganho vai para… Aplico-o em algum projeto novo. Claro que, tendo as minhas origens na classe trabalhadora, também sinto que nunca há o suficiente para deixar à minha família. Assim, há uma espécie de instinto de sobrevivência que… Ok, eu poderia perfeitamente… Tudo bem, podia deixar o que tenho a todos os filhos do passado e do futuro e toda a gente ficaria bem. No entanto, também gostaria de iniciar uma nova empresa na Internet, pelo que vou precisar de mais algum… Portanto, é um bocado, hmm… Continuo a semear. Não sou um comprador de coisas. Acho que a única coisa que adquiro de modo viciante e obsessivo é arte, percebes? Não sou um homem de casas ou de automóveis. O único carro bom que alguma vez comprei foi um e-type de 1967 (Jaguar). Um e meio e essa é a razão pela qual… (risos) … ficaria com meio. E não tenho coisas, não tenho um avião, não tenho… (dito num tom de voz queixoso e brincalhão) Oh, mas não tenho muitas coisas, Jeremy! Não compro coisas, prefiro… Tendo a encarar o dinheiro como o combustível para pôr o resto das coisas em movimento. Sinto-me mais confortável assim.
Jeremy Paxman: Sentes algum desejo de voltar para aqui (Reino Unido)?
David Bowie: Adorava regressar e vou fazê-lo. Ainda não decidimos quando, mas é um dado adquirido. As outras coisas que pretendo fazer nos próximos… diria, dois anos, poderão vir a surpreender as pessoas.
Jeremy Paxman: O que achas do Cool Britania (uma tendência britânica dos anos noventa, que incluiu clubes como o Ministry of Sound e o Megatripolis, assim como bandas como os Blur, os Oasis, os Suede, os Pulp e os Verve, entre outras coisas, simbolizando uma renovação do orgulho britânico)?
David Bowie: Oh, básico! É tão ridículo e cheio de clichés. E ineficaz, acho. Não penso que tenha realmente mudado… Acho que ajudou os media a encontrarem um modo de descrever este tempo. Mas não acho que ninguém, em lado algum, acredite nisso. Há o bom e o mau em tudo o que fazemos… Somos excelentes arquitetos, temos alguns ótimos artistas, artistas plásticos, e alguns artistas péssimos também. A música… Sempre fomos bons na música. Não somos uma verdadeira nação do rock, tudo o que fazemos no rock contém um sentimento de ironia. Sabemos que não somos os Americanos. Sabemos que o rock não brotou das nossas almas. Portanto, tal como sempre fazem, os britânicos procuram fazer algo que lhes dê um ar de presunção. E é nisso que somos bons. (sorriso)
Jeremy Paxman: Mas quando vês os políticos abraçar estrelas do rock, quero dizer, pessoalmente pego logo no meu revólver…
David Bowie: Bom, pelo menos, uso um par de sapatos de salto alto quando me encontro com um primeiro-ministro… (Jeremy Paxman ri) Continuo a desempenhar o meu papel. Ele nem reparou, sabes?
Jeremy Paxman: Bom, é o Tony Blair!
David Bowie: Hmm…
Jeremy Paxman: Ele não reparou que estavas com sa…
David Bowie: Usei sapatos femininos de salto alto e um belo casaco e uma gravata. Foi a última vez em que usei uma gravata! (sorri) Acho… Não, não foi! Usei uma gola de padre. Um belo fato preto, uma camisa preta, uma gola de padre e um par de sapatos de salto alto. E ele nem tugiu nem mugiu.
Jeremy Paxman: Muito obrigado.