2002: Entrevista com Ray Cokes para o canal francês Arte
David Bowie: Lança-me os três temas depressa.
Ray Cokes: Certo. Então, hmm, bom dia!
David Bowie: Bom dia.
Ray Cokes: Bom dia, David, e bom dia a todos por se nos juntarem ao vivo aqui em Londres. É o Power Breakfast Meeting (encontro de pessoas influentes para discutir negócios durante o pequeno-almoço) com o senhor Bowie e só temos 15 minutos para tudo e três temáticas nesta noite da Arte sobre David Bowie, A Lenda e vamos ter um documentário, Feliz Natal Mr. Lawrence o concerto do Olympia e, naturalmente, queremos falar sobre Heathen. Então, se pudesses concentrar-te nisso agora, não temos muito tempo.
David Bowie: Ok. Heathen, gosto muito do álbum, é fabuloso. Os concertos do Olympia foram espetaculares, público ótimo. Feliz Natal Mr. Lawrence, Oshima, um realizador esplêndido. Obrigado. (Bowie e Ray Cokes apertam as mãos)
Ray Cokes: Tenho que te perguntar o que vais fazer a seguir, antes de…
David Bowie: Oh! Talvez escreva um musical. Pelo menos, foi isso que li.
Ray Cokes: Bom, obrigado e peço desculpa se tiver tomado muito do teu tempo… (voltam a apertar as mãos)
David Bowie: Muito obrigado.
Ray Cokes. Muito obrigado.
Bowie desaparece para a direita e Ray para a esquerda e ficam fora do alcance da câmara durante alguns segundos. Risos. Regressam.
Ray Cokes: Obrigado. Mais alguma coisa?
David Bowie: Ok.
Ray Cokes: E agora vamos tratar das coisas chatas…
David Bowie: Sempre quis fazer isso. (risos)
Ray Cokes: Ok, mas não temos tempo.
David Bowie: Certo, está bem.
Ray Cokes: Então, vamos falar sobre algumas coisas sérias se eu o conseguir fazer a esta hora da manhã…
David Bowie: Ok.
Ray Cokes: Então… eis-nos aqui. Estamos aqui por causa de Heathen. Claro, e vou-te citar porque disseste que me poderias citar…
David Bowie: Meu Deus!
Ray Cokes: “Seja o que for que criemos não pode ser dado por concluído antes de o público ter participado…”
David Bowie: Sim.
Ray Cokes: “… e o espaço entre o artista e o público é o verdadeiro tema duma obra de arte”. Bom, Heathen, já saiu há uns dois meses…
David Bowie: Na verdade, isso era Wittgenstein. (Ludwig Wittgenstein, filósofo austro-britânico, falecido em 1951)
Ray Cokes: Era?
David Bowie: Sim. Parafraseei-o.
Ray Cokes: Roubaste a frase a outro. Para… como é que é?
David Bowie: Parafraseei.
Ray Cokes: Bom, e eu acabei de te papaguear (parrotphrased you), uma frase brilhante, meu caro! Então, o que achas de Heathen? Como têm sido as reações?
David Bowie: Hmm… Segundo o meu site web (sorriso), é divertido e fixe porque, agora, consegues ficar a saber exatamente o que as pessoas pensam do teu trabalho. Acho que se consegue alguma exatidão. O que, para mim, foi muito compensador foi que o facto de estar na Internet permite-nos ver que colhemos opiniões de um público muito mais jovem do que se perguntássemos a pessoas num pub. Então, obtenho uma gama de respostas, geralmente, de pessoas entre os 18 e os 30 anos de idade, sabes, o que é muito porreiro. E consigo, dessa maneira e através deles, perceber o peso do que tenho escrito nos últimos anos. E tenho muita sorte por ter… uma grande fatia do meu público é bastante jovem. Acho que as pessoas gostam bastante deste álbum e sei que está no topo com os meus dois outros favoritos mais recentes, Outside e Earthling. E tenho a certeza absoluta de que está nesse grupo de três.
Ray Cokes: Heathen contém algumas das melhores canções que já escreveste. Quero dizer, para mim, 5:15 (5: 15 The Angels Have Gone) é como…
David Bowie: É uma bonita canção. Gosto bastante. E é, também, ótima para interpretar no palco.
Ray Cokes: Usei-a com uma senhora, correu muito bem… Não há problema?
David Bowie: Usaste?
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Como? Que é que queres dizer com… 5:15?
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Que diabo é que 5:15 tem de sexual?
Ray Cokes: Numa cena lenta e romântica.
David Bowie: Ah, estou a ver! 5:15… Bom, não é lá muito sexy, pois não?
Ray Cokes: (risos) Bom, eu não queria dizer sexy…
David Bowie: Suponho que 9:45 seja um bocadinho sexy, não achas?
Ray Cokes: Eu queria dizer romanticamente!
David Bowie: Já entendi… Só consigo pensar carnalmente.
Ray Cokes: Bom, no documentário que esta noite vamos mostrar na Arte temos algumas filmagens espetaculares tuas com 17 anos…
David Bowie: Desculpa, que documentário? É aquele que és tu mesmo a montar?
Ray Cokes: És tu de cabelo comprido…
David Bowie: Ah-ah!
Ray Cokes: E…
David Bowie: Qual cabelo comprido? O de 1969 ou o de 2000?
Ray Cokes: Não, não, de 2000.
David Bowie: Cabelo comprido de 2000…
Ray Cokes: Fala dos velhos tempos.
David Bowie: (risos) Parece uma interessante…
Ray Cokes: Bom, temos ótimas filmagens de ti mesmo, ainda jovem. O que é que pensarias se desses de caras contigo mesmo agora, assim, com 18 ou 19 anos?
David Bowie: Sabes, é curioso porque já fiz uma entrevista baseada nessa premissa… Entrevistei-me com 19 anos. Acho que foi há uns cinco anos… E ele tem todas aquelas ambições um bocado tontas… E eu deito-as todas por terra! (risos) É um argumento interessante.
Ray Cokes: Publicaste isso?
David Bowie: Sim, saiu em algumas revistas. Na verdade, é um trabalho bastante divertido.
Ray Cokes: Tenho que o ver. Então, o que aconteceu quando te encontraste contigo mesmo? Gostaste de ti?
David Bowie: Senti alguma pena de mim mesmo por saber que teria de passar por todas as tretas por que tive que passar. Pensei: “Bom, não posso mudar nada”…
Ray Cokes: Voltemos ao concerto de julho no Olympia.
David Bowie: Sim, vamos lá.
Ray Cokes: Vamos.
David Bowie: Estou cheio de vontade de o fazer!
Ray Cokes: Vamos voltar atrás no tempo. Pareces mesmo, mesmo feliz!
David Bowie: Antes de mais, adoro a minha banda, certo? (dito num tom de voz engraçado) Gosto mesmo da minha banda! Estou muito satisfeito comigo mesmo e cheio de presunção por causa deles, são ótimos.
Ray Cokes: Têm versões fantásticas de temas antigos…
David Bowie: São mesmo bons, não são? Excelentes músicos e a banda tem um entusiasmo tão grande com o que fazemos… Porque, de certa forma, é tudo muito musical. Não há produções de palco, nem apetrechos teatrais, sabes, apenas um bonito colete preto e um bom par de calças. Heddy Slimane (fotógrafo e estilista franco-tunisino), aliás, que…
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: …é um designer excelente. (para a câmara) Heddy Slimane! Olá, Heddy, como estás?
Ray Cokes: Essa não é uma das minhas temáticas, David.
David Bowie: Desculpa, voltemos ao espetáculo. Então, juntámos 40 ou 50 canções para utilizarmos, dependendo do tamanho do público, porque fizemos uma coisa interessante que já tenho vindo a fazer há algum tempo… Damos espetáculos pequenos nos quais podemos tocar material mais desconhecido e incomum e, depois, espetáculos grandes nos quais sei que tenho que apresentar temas muito conhecidos…
Ray Cokes: Porque é que tudo funciona melhor com públicos mais pequenos e coisas desconhecidas?
David Bowie: Porque sabemos que os públicos pequenos estão mesmo presentes e querem mesmo ouvir aquilo… conhecem o material muito, muito bem. Assim, podemos ocupar três quartos da noite com coisas incrivelmente obscuras e ter um público que efetivamente as ouve. Num lugar grande sabes o que querem e adaptas-te. E aprendemos a tocar 40 ou 50 canções para conseguir trabalhar assim nestas últimas semanas. E tem funcionado extremamente bem porque numa noite tocamos para 50 ou 60 mil e eles ouvem o Let’s Dance (risos). E então, noutra noite, tocamos para dois ou três mil e tocamos o Low do princípio ao fim. Tem sido um grande prazer. Mas, sabes, eu achava que 40 a 50 canções era muito bom. O nosso homem do som também trabalha com o Bob Dylan. E eu perguntei-lhe: “Quantas canções é que o Bob reuniu?” E ele respondeu: “Hmm, bom, da última vez eram 187”. 187!
Ray Cokes: 187 é tudo…
David Bowie: Eu sei! É absolutamente extraordinário. Espantoso…
Ray Cokes: Disseste, acerca da net, que há muitos jovens… Disseste uma coisa ótima no site: “Provavelmente, o melhor de se ser David Bowie é ter os Bowie fans”.
David Bowie: Sim. É verdade.
Ray Cokes: E… Se olharmos para o público no Olympia havia uma enorme quantidade de – sei que pareço o avozinho a falar – jovens!
David Bowie: Sim, nos quarentas! (risos)
Ray Cokes: Não os tinhas nos vinte e nos trint… E estavam todos a cantar!
David Bowie: Eu sei, é ótimo.
Ray Cokes: Não é fantástico?
David Bowie: Sim, é… Claro que é arrebatador. Claro que é bonito de se ver. E tenho que agradecer a outros por isso. Quero dizer, é por causa… Sabes, podemos pensar em gente como os Suede, o Trent Reznor, o Billy Corgan e… Há um bom número de bandas mais recentes que foram muito, muito generosas quando sugeriram aos seus fãs que ouvissem alguns dos álbuns que eles mesmos ouviam quando estavam em processo de formação e, por causa da Internet, atualmente essas coisas realmente propagam-se. Portanto, para mim foi fantástico. Realmente… É difícil de acreditar como tudo isso contribuiu para alargar o meu público durante os últimos dez anos.
Ray Cokes: Não passaste por nenhum tipo de crise da meia-idade e disseste: “Porque é que estas bandas novas estão a fazer coisas que eu não consigo fazer?”. Passaste por isso?
David Bowie: Sim, tinha 19 anos. Tive a minha crise de meia-idade aos 19. (risos)
Ray Cokes: Então, já deves ter morrido…
David Bowie: Não sei, acho que devo ser… Sou o meu próprio avô. (sorriso)
Ray Cokes: Acho que nos vamos encontrar numa vida passada… Será que essa é uma das minhas temáticas?
David Bowie: Não.
Ray Cokes: Vamos antes falar de…
David Bowie: Certa vez, Oshima filmou-me (shot me once/filmou ou disparou), sabes…
Ray Cokes: Não, não estou a falar disso.
David Bowie: Ele filmou-me e o filme chamava-se… estou a dar-te uma deixa!
Ray Cokes: Está bem!
David Bowie: Certa vez, Oshima filmou-me para um filme chamado Feliz Natal Mr. Lawrence…
Ray Cokes: Como foi essa experiência, em 1983?
David Bowie: Tropical… Tropical. Estávamos numa ilha chamada Rarotonga e perdemos o operador de câmara no primeiro dia. Desapareceu por completo. Estávamos nesta ilha pequeníssima e ninguém nos explicava. A parte japonesa da equipa de filmagem não nos contava que o operador de câmara tinha fugido, simplesmente desaparecido. Então, usámos o segundo operador de câmara e todas as noites os japoneses entravam selva dentro à procura dele. E nunca o encontraram. E todos os anos a sua… acho que agora tenho que lhe chamar viúva, viaja até à ilha para saber se há novidades sobre o marido. Foi inacreditável…
Ray Cokes: Estás a falar a sério?
David Bowie: Muito estranho… Havia uma espécie de nota, sabes, que ele deixou na sua cabana e que dizia “Não posso trabalhar com neozelandezes”, por causa da guerra e isso tudo. Quero dizer, foi a coisa mais estranha do mundo!
Ray Cokes: Então, o que recordas, à parte o desaparecimento misterioso do operador de câmara? Foi…
David Bowie: E que fantástico sentido de humor do Tom Conti (Tenente Coronel John Lawrence, no filme)! Uma companhia excelente.
Ray Cokes: Mas precisavas disso, não era?
David Bowie: Hmm… Dou-me bastante bem em ilhas e esse género de coisas! Não, sim, gostei de tudo isso.
Ray Cokes: Bom, vou terminar com um par de perguntas rápidas… Não sei se concordas mas, durante a tua carreira, sempre foste um pouco niilista.
David Bowie: Sim… Negativo.
Ray Cokes: Sim. Realmente.
David Bowie: Depressivo.
Ray Cokes: Um pouco depressivo. Como te sentes, neste momento, relativamente ao tempo em que vivemos? Pareces estar sempre tão feliz. Como te sentes?
David Bowie: Oh, sinto-me… hoje em dia, sinto uma espécie de… niilista, depressivo, negativo.
Ray Cokes: Ainda?
David Bowie: Sim. Fundamentalmente, acho. Não, não é isso, é o status quo. Não a banda… (Status Quo, banda britânica fundada em 1962 e ainda ativa) O estado de alma. Acho que nada mudou, tudo mudou (“…Nothing has changed/Everything has changed”). Soa como uma citação da primeira canção do meu álbum Heathen…
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Tenho mais ou menos a sensação de que não nos estamos realmente a desenvolver de nenhuma das formas que… que somos levados a acreditar que estamos a evoluir de modo gigantesco e que nos estamos a dirigir para algum tipo de pico, de zénite, e a verdade é que não acredito nisso. Então, não é algo negativo, é antes… estou muito mais disposto a aceitar em absoluto que somos o que somos, não de modo resignado mas, acho, de forma a sentir-me bem com a ideia de que não estamos a evoluir e que não existe nenhum plano e que não estamos a ir em direção nenhuma. Este é e sempre será o estado das coisas, um lamentável fluxo de caos. E é isso que temos que ser capazes de aproveitar o melhor possível. Sabes… E a única forma de o conseguir é apreciando o dia-a-dia.
Ray Cokes: E o único futuro é o que construímos, não é?
David Bowie: Concordo plenamente.
Ray Cokes: Achas que, sendo tu uma imensa personalidade internacional, há alguma coisa que possas fazer? Alguma coisa?
David Bowie: De todo.
Ray Cokes: Para mudar as coisas?
David Bowie: De todo. Não, as agendas estão demasiadamente delineadas pelas administrações. Acho que acabamos com ar de palhaços se tentarmos fazê-lo. Penso que a única coisa que podemos fazer é tomar conta de tudo o que se encontra imediatamente no nosso parâmetro, na nossa área de responsabilidade. Na verdade, é mais ou menos tudo.
Ray Cokes: (dá um aperto de mão a David Bowie) Que possas permanecer entre nós muito tempo. (Long may you be amongst us)
David Bowie: Um monge? (a monk)
Ray Cokes: Entre nós. (amongst us)
David Bowie: Não, aos 19 anos ia ser monge!
Ray Cokes: E também palhaço, já que falámos em palhaços?
David Bowie: Sim, o que eu queria mesmo ser… Queria ser um lenhador! (risos)
Ray Cokes: Sei que não podemos fazer a cena dos Monty Python, ficávamos cá mais quinze minutos.
David Bowie: Fizemo-la logo no início.
Ray Cokes: Pois fizemos, não foi?
David Bowie: Acho que sim.
Ray Cokes: Obrigado, foi ótimo para mim e para todos nós.
David Bowie: Foi ótimo rever-te!
Ray Cokes: E…
David Bowie: Estás com bom aspeto. Bonito fato!
Ray Cokes: Muito obrigado, é Armani. Muito obrigado.
Ray Cokes: Certo. Então, hmm, bom dia!
David Bowie: Bom dia.
Ray Cokes: Bom dia, David, e bom dia a todos por se nos juntarem ao vivo aqui em Londres. É o Power Breakfast Meeting (encontro de pessoas influentes para discutir negócios durante o pequeno-almoço) com o senhor Bowie e só temos 15 minutos para tudo e três temáticas nesta noite da Arte sobre David Bowie, A Lenda e vamos ter um documentário, Feliz Natal Mr. Lawrence o concerto do Olympia e, naturalmente, queremos falar sobre Heathen. Então, se pudesses concentrar-te nisso agora, não temos muito tempo.
David Bowie: Ok. Heathen, gosto muito do álbum, é fabuloso. Os concertos do Olympia foram espetaculares, público ótimo. Feliz Natal Mr. Lawrence, Oshima, um realizador esplêndido. Obrigado. (Bowie e Ray Cokes apertam as mãos)
Ray Cokes: Tenho que te perguntar o que vais fazer a seguir, antes de…
David Bowie: Oh! Talvez escreva um musical. Pelo menos, foi isso que li.
Ray Cokes: Bom, obrigado e peço desculpa se tiver tomado muito do teu tempo… (voltam a apertar as mãos)
David Bowie: Muito obrigado.
Ray Cokes. Muito obrigado.
Bowie desaparece para a direita e Ray para a esquerda e ficam fora do alcance da câmara durante alguns segundos. Risos. Regressam.
Ray Cokes: Obrigado. Mais alguma coisa?
David Bowie: Ok.
Ray Cokes: E agora vamos tratar das coisas chatas…
David Bowie: Sempre quis fazer isso. (risos)
Ray Cokes: Ok, mas não temos tempo.
David Bowie: Certo, está bem.
Ray Cokes: Então, vamos falar sobre algumas coisas sérias se eu o conseguir fazer a esta hora da manhã…
David Bowie: Ok.
Ray Cokes: Então… eis-nos aqui. Estamos aqui por causa de Heathen. Claro, e vou-te citar porque disseste que me poderias citar…
David Bowie: Meu Deus!
Ray Cokes: “Seja o que for que criemos não pode ser dado por concluído antes de o público ter participado…”
David Bowie: Sim.
Ray Cokes: “… e o espaço entre o artista e o público é o verdadeiro tema duma obra de arte”. Bom, Heathen, já saiu há uns dois meses…
David Bowie: Na verdade, isso era Wittgenstein. (Ludwig Wittgenstein, filósofo austro-britânico, falecido em 1951)
Ray Cokes: Era?
David Bowie: Sim. Parafraseei-o.
Ray Cokes: Roubaste a frase a outro. Para… como é que é?
David Bowie: Parafraseei.
Ray Cokes: Bom, e eu acabei de te papaguear (parrotphrased you), uma frase brilhante, meu caro! Então, o que achas de Heathen? Como têm sido as reações?
David Bowie: Hmm… Segundo o meu site web (sorriso), é divertido e fixe porque, agora, consegues ficar a saber exatamente o que as pessoas pensam do teu trabalho. Acho que se consegue alguma exatidão. O que, para mim, foi muito compensador foi que o facto de estar na Internet permite-nos ver que colhemos opiniões de um público muito mais jovem do que se perguntássemos a pessoas num pub. Então, obtenho uma gama de respostas, geralmente, de pessoas entre os 18 e os 30 anos de idade, sabes, o que é muito porreiro. E consigo, dessa maneira e através deles, perceber o peso do que tenho escrito nos últimos anos. E tenho muita sorte por ter… uma grande fatia do meu público é bastante jovem. Acho que as pessoas gostam bastante deste álbum e sei que está no topo com os meus dois outros favoritos mais recentes, Outside e Earthling. E tenho a certeza absoluta de que está nesse grupo de três.
Ray Cokes: Heathen contém algumas das melhores canções que já escreveste. Quero dizer, para mim, 5:15 (5: 15 The Angels Have Gone) é como…
David Bowie: É uma bonita canção. Gosto bastante. E é, também, ótima para interpretar no palco.
Ray Cokes: Usei-a com uma senhora, correu muito bem… Não há problema?
David Bowie: Usaste?
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Como? Que é que queres dizer com… 5:15?
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Que diabo é que 5:15 tem de sexual?
Ray Cokes: Numa cena lenta e romântica.
David Bowie: Ah, estou a ver! 5:15… Bom, não é lá muito sexy, pois não?
Ray Cokes: (risos) Bom, eu não queria dizer sexy…
David Bowie: Suponho que 9:45 seja um bocadinho sexy, não achas?
Ray Cokes: Eu queria dizer romanticamente!
David Bowie: Já entendi… Só consigo pensar carnalmente.
Ray Cokes: Bom, no documentário que esta noite vamos mostrar na Arte temos algumas filmagens espetaculares tuas com 17 anos…
David Bowie: Desculpa, que documentário? É aquele que és tu mesmo a montar?
Ray Cokes: És tu de cabelo comprido…
David Bowie: Ah-ah!
Ray Cokes: E…
David Bowie: Qual cabelo comprido? O de 1969 ou o de 2000?
Ray Cokes: Não, não, de 2000.
David Bowie: Cabelo comprido de 2000…
Ray Cokes: Fala dos velhos tempos.
David Bowie: (risos) Parece uma interessante…
Ray Cokes: Bom, temos ótimas filmagens de ti mesmo, ainda jovem. O que é que pensarias se desses de caras contigo mesmo agora, assim, com 18 ou 19 anos?
David Bowie: Sabes, é curioso porque já fiz uma entrevista baseada nessa premissa… Entrevistei-me com 19 anos. Acho que foi há uns cinco anos… E ele tem todas aquelas ambições um bocado tontas… E eu deito-as todas por terra! (risos) É um argumento interessante.
Ray Cokes: Publicaste isso?
David Bowie: Sim, saiu em algumas revistas. Na verdade, é um trabalho bastante divertido.
Ray Cokes: Tenho que o ver. Então, o que aconteceu quando te encontraste contigo mesmo? Gostaste de ti?
David Bowie: Senti alguma pena de mim mesmo por saber que teria de passar por todas as tretas por que tive que passar. Pensei: “Bom, não posso mudar nada”…
Ray Cokes: Voltemos ao concerto de julho no Olympia.
David Bowie: Sim, vamos lá.
Ray Cokes: Vamos.
David Bowie: Estou cheio de vontade de o fazer!
Ray Cokes: Vamos voltar atrás no tempo. Pareces mesmo, mesmo feliz!
David Bowie: Antes de mais, adoro a minha banda, certo? (dito num tom de voz engraçado) Gosto mesmo da minha banda! Estou muito satisfeito comigo mesmo e cheio de presunção por causa deles, são ótimos.
Ray Cokes: Têm versões fantásticas de temas antigos…
David Bowie: São mesmo bons, não são? Excelentes músicos e a banda tem um entusiasmo tão grande com o que fazemos… Porque, de certa forma, é tudo muito musical. Não há produções de palco, nem apetrechos teatrais, sabes, apenas um bonito colete preto e um bom par de calças. Heddy Slimane (fotógrafo e estilista franco-tunisino), aliás, que…
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: …é um designer excelente. (para a câmara) Heddy Slimane! Olá, Heddy, como estás?
Ray Cokes: Essa não é uma das minhas temáticas, David.
David Bowie: Desculpa, voltemos ao espetáculo. Então, juntámos 40 ou 50 canções para utilizarmos, dependendo do tamanho do público, porque fizemos uma coisa interessante que já tenho vindo a fazer há algum tempo… Damos espetáculos pequenos nos quais podemos tocar material mais desconhecido e incomum e, depois, espetáculos grandes nos quais sei que tenho que apresentar temas muito conhecidos…
Ray Cokes: Porque é que tudo funciona melhor com públicos mais pequenos e coisas desconhecidas?
David Bowie: Porque sabemos que os públicos pequenos estão mesmo presentes e querem mesmo ouvir aquilo… conhecem o material muito, muito bem. Assim, podemos ocupar três quartos da noite com coisas incrivelmente obscuras e ter um público que efetivamente as ouve. Num lugar grande sabes o que querem e adaptas-te. E aprendemos a tocar 40 ou 50 canções para conseguir trabalhar assim nestas últimas semanas. E tem funcionado extremamente bem porque numa noite tocamos para 50 ou 60 mil e eles ouvem o Let’s Dance (risos). E então, noutra noite, tocamos para dois ou três mil e tocamos o Low do princípio ao fim. Tem sido um grande prazer. Mas, sabes, eu achava que 40 a 50 canções era muito bom. O nosso homem do som também trabalha com o Bob Dylan. E eu perguntei-lhe: “Quantas canções é que o Bob reuniu?” E ele respondeu: “Hmm, bom, da última vez eram 187”. 187!
Ray Cokes: 187 é tudo…
David Bowie: Eu sei! É absolutamente extraordinário. Espantoso…
Ray Cokes: Disseste, acerca da net, que há muitos jovens… Disseste uma coisa ótima no site: “Provavelmente, o melhor de se ser David Bowie é ter os Bowie fans”.
David Bowie: Sim. É verdade.
Ray Cokes: E… Se olharmos para o público no Olympia havia uma enorme quantidade de – sei que pareço o avozinho a falar – jovens!
David Bowie: Sim, nos quarentas! (risos)
Ray Cokes: Não os tinhas nos vinte e nos trint… E estavam todos a cantar!
David Bowie: Eu sei, é ótimo.
Ray Cokes: Não é fantástico?
David Bowie: Sim, é… Claro que é arrebatador. Claro que é bonito de se ver. E tenho que agradecer a outros por isso. Quero dizer, é por causa… Sabes, podemos pensar em gente como os Suede, o Trent Reznor, o Billy Corgan e… Há um bom número de bandas mais recentes que foram muito, muito generosas quando sugeriram aos seus fãs que ouvissem alguns dos álbuns que eles mesmos ouviam quando estavam em processo de formação e, por causa da Internet, atualmente essas coisas realmente propagam-se. Portanto, para mim foi fantástico. Realmente… É difícil de acreditar como tudo isso contribuiu para alargar o meu público durante os últimos dez anos.
Ray Cokes: Não passaste por nenhum tipo de crise da meia-idade e disseste: “Porque é que estas bandas novas estão a fazer coisas que eu não consigo fazer?”. Passaste por isso?
David Bowie: Sim, tinha 19 anos. Tive a minha crise de meia-idade aos 19. (risos)
Ray Cokes: Então, já deves ter morrido…
David Bowie: Não sei, acho que devo ser… Sou o meu próprio avô. (sorriso)
Ray Cokes: Acho que nos vamos encontrar numa vida passada… Será que essa é uma das minhas temáticas?
David Bowie: Não.
Ray Cokes: Vamos antes falar de…
David Bowie: Certa vez, Oshima filmou-me (shot me once/filmou ou disparou), sabes…
Ray Cokes: Não, não estou a falar disso.
David Bowie: Ele filmou-me e o filme chamava-se… estou a dar-te uma deixa!
Ray Cokes: Está bem!
David Bowie: Certa vez, Oshima filmou-me para um filme chamado Feliz Natal Mr. Lawrence…
Ray Cokes: Como foi essa experiência, em 1983?
David Bowie: Tropical… Tropical. Estávamos numa ilha chamada Rarotonga e perdemos o operador de câmara no primeiro dia. Desapareceu por completo. Estávamos nesta ilha pequeníssima e ninguém nos explicava. A parte japonesa da equipa de filmagem não nos contava que o operador de câmara tinha fugido, simplesmente desaparecido. Então, usámos o segundo operador de câmara e todas as noites os japoneses entravam selva dentro à procura dele. E nunca o encontraram. E todos os anos a sua… acho que agora tenho que lhe chamar viúva, viaja até à ilha para saber se há novidades sobre o marido. Foi inacreditável…
Ray Cokes: Estás a falar a sério?
David Bowie: Muito estranho… Havia uma espécie de nota, sabes, que ele deixou na sua cabana e que dizia “Não posso trabalhar com neozelandezes”, por causa da guerra e isso tudo. Quero dizer, foi a coisa mais estranha do mundo!
Ray Cokes: Então, o que recordas, à parte o desaparecimento misterioso do operador de câmara? Foi…
David Bowie: E que fantástico sentido de humor do Tom Conti (Tenente Coronel John Lawrence, no filme)! Uma companhia excelente.
Ray Cokes: Mas precisavas disso, não era?
David Bowie: Hmm… Dou-me bastante bem em ilhas e esse género de coisas! Não, sim, gostei de tudo isso.
Ray Cokes: Bom, vou terminar com um par de perguntas rápidas… Não sei se concordas mas, durante a tua carreira, sempre foste um pouco niilista.
David Bowie: Sim… Negativo.
Ray Cokes: Sim. Realmente.
David Bowie: Depressivo.
Ray Cokes: Um pouco depressivo. Como te sentes, neste momento, relativamente ao tempo em que vivemos? Pareces estar sempre tão feliz. Como te sentes?
David Bowie: Oh, sinto-me… hoje em dia, sinto uma espécie de… niilista, depressivo, negativo.
Ray Cokes: Ainda?
David Bowie: Sim. Fundamentalmente, acho. Não, não é isso, é o status quo. Não a banda… (Status Quo, banda britânica fundada em 1962 e ainda ativa) O estado de alma. Acho que nada mudou, tudo mudou (“…Nothing has changed/Everything has changed”). Soa como uma citação da primeira canção do meu álbum Heathen…
Ray Cokes: Sim.
David Bowie: Tenho mais ou menos a sensação de que não nos estamos realmente a desenvolver de nenhuma das formas que… que somos levados a acreditar que estamos a evoluir de modo gigantesco e que nos estamos a dirigir para algum tipo de pico, de zénite, e a verdade é que não acredito nisso. Então, não é algo negativo, é antes… estou muito mais disposto a aceitar em absoluto que somos o que somos, não de modo resignado mas, acho, de forma a sentir-me bem com a ideia de que não estamos a evoluir e que não existe nenhum plano e que não estamos a ir em direção nenhuma. Este é e sempre será o estado das coisas, um lamentável fluxo de caos. E é isso que temos que ser capazes de aproveitar o melhor possível. Sabes… E a única forma de o conseguir é apreciando o dia-a-dia.
Ray Cokes: E o único futuro é o que construímos, não é?
David Bowie: Concordo plenamente.
Ray Cokes: Achas que, sendo tu uma imensa personalidade internacional, há alguma coisa que possas fazer? Alguma coisa?
David Bowie: De todo.
Ray Cokes: Para mudar as coisas?
David Bowie: De todo. Não, as agendas estão demasiadamente delineadas pelas administrações. Acho que acabamos com ar de palhaços se tentarmos fazê-lo. Penso que a única coisa que podemos fazer é tomar conta de tudo o que se encontra imediatamente no nosso parâmetro, na nossa área de responsabilidade. Na verdade, é mais ou menos tudo.
Ray Cokes: (dá um aperto de mão a David Bowie) Que possas permanecer entre nós muito tempo. (Long may you be amongst us)
David Bowie: Um monge? (a monk)
Ray Cokes: Entre nós. (amongst us)
David Bowie: Não, aos 19 anos ia ser monge!
Ray Cokes: E também palhaço, já que falámos em palhaços?
David Bowie: Sim, o que eu queria mesmo ser… Queria ser um lenhador! (risos)
Ray Cokes: Sei que não podemos fazer a cena dos Monty Python, ficávamos cá mais quinze minutos.
David Bowie: Fizemo-la logo no início.
Ray Cokes: Pois fizemos, não foi?
David Bowie: Acho que sim.
Ray Cokes: Obrigado, foi ótimo para mim e para todos nós.
David Bowie: Foi ótimo rever-te!
Ray Cokes: E…
David Bowie: Estás com bom aspeto. Bonito fato!
Ray Cokes: Muito obrigado, é Armani. Muito obrigado.