2002: Entrevistado por Michael Parkinson para o Parkinson Show, da BBC1, com a presença de Tom Hanks
Michael Parkinson: Um crítico afirmou, acerca do meu próximo convidado, que ao longo de uma carreira de 35 anos se tornou o artista mais influente na história da música rock. Continua a gravar discos e o seu álbum mais recente chama-se Heathen. Lançou o single Everyone Says Hi. Senhoras e senhores, David Bowie! (aplausos)
Bowie a sua banda interpretam Everyone Says Hi
Michael Parkinson: Obrigado.
David Bowie. É um grande prazer. Olá, Tom!
Tom Hanks: Olá, Dave.
David Bowie. Cá estamos. Obrigado!
Michael Parkinson: Há muita gente de Brixton no público, não há?
David Bowie: Uma par deles, sim. Acho que estou a reconhecer muita gente de Hatfield! (risos do público)
(…)
Michael Parkinson: Estou desapontado. Disseram-me que eras capaz de aparecer com um dos blusões do Little Richard.
David Bowie: (risos) Sim.
Michael Parkinson: Do teu grande herói, um blusão que agora adquiriste.
David Bowie: Adquiri-o através da minha mulher, foi num dos nossos aniversários de casamento, há alguns meses e ela… Quando eu era miúdo, o meu ídolo era o Little Richard. E, como ela sabia disso, encontrou um dos seus velhos blusões de palco, de 1956, e deu-mo como prenda de aniversário. E eu acho que o Little Richard era imenso! O tipo… Posso usá-lo como tenda no jardim. (o público ri) Ou seja, ele devia ter pernas bem pequenas, percebes, e um corpo grande porque as mangas são enormes… Acho que a primeira vez em que o vi deve ter sido em 1963. E acho que talvez tenha sido no Brixton Odeon. Não sei, alguém há de lembrar-se da tour, hoje em dia toda a gente se lembra de tudo. E os Rolling Stones eram a banda de suporte, foi a primeira vez em que os vi. E não eram lá muito conhecidos. Uma meia dúzia de miúdos acorreu para junto do palco, sabes, essa era a base de fãs deles, toda a gente lá estava pelo Little Richard. Acho que o Bo Didley também participava. E foi impagável. Nunca tinha visto nada tão rebelde na vida! Um tipo qualquer gritou: “Vai cortar esse cabelo!” (o público ri) E o Mick respondeu, nunca me hei de esquecer do que disse: “Vou ficar parecido contigo?” (imita o tom de voz de Jagger e o público ri) Pensei: “Meu Deus! Este é que é o futuro da música?” E foi mesmo!
Michael Parkinson: Mas foi a música que te cativou ou a maneira como atuaram?
David Bowie: Na verdade foi… Na verdade, foi a música. E toda a forma como atuaram. (risos)
Michael Parkinson: As duas.
David Bowie: Acho que foi a combinação. Quero dizer, lembro-me da minha mãe, ela não tinha noção do que estava a desencadear mas, ao pequeno-almoço, dizia sempre: “Oh, sabem, eu podia ter sido cantora!”. E começava a cantar. E havia uma coisa na rádio, quando eu tinha à volta de seis anos, todos os domingos o Ernest Lough a cantar O For the Wings of a Dove.
Michael Parkinson: Era o “rapaz soprano”…
David Bowie: O “rapaz soprano”. Sim, já morreu, certo?
Michael Parkinson: A voz morreu antes dele.
David Bowie: Ai sim? (o público ri) E a minha mãe cantava “O for the wings, for the wings of a dove, far away, far away” (a cantar) e isso tudo. E a verdade é que era boa e eu pensava “Talvez ela tivesse podido ser cantora…”, percebes, seria uma grande cantora. Portanto, acho que uma das minhas primeiras influências foi o Ernest Lough. “O for the wings…” (o público ri)
Michael Parkinson: Mas lá estavas tu em Brixton… E, depois, em Bromley.
David Bowie: E depois em Bromley.
Michael Parkinson: Então, foi naquele instante, quando viste o Little Richard, que decidiste “esta é a minha vida”?
David Bowie: Na verdade, foi ter visto o Ernest Lough. Ele foi à igreja e vi-o lá a cantar e pensei “oh, isso é…” Mas havia outras coisas na rádio que me levaram a pensar na música. Os temas musicais que não… que me deixavam baralhado. Lembro-me de que, nesses tempos, também passavam muito a Suite dos Planetas (The Planets op. 32) de (Gustav) Holst. Especialmente Marte (Mars). (entoa um pouco o tema) Aquelas notas eram tão estranhas, não se encaixavam em nada que eu conhecesse, percebes? E temas assim e outros em que as notas musicais pareciam perder o rumo cativaram-me, como Tubby the Tuba (tema de 1945, com música de George Kleinsinger e letra de Paul Tripp)… Lembras-te de Tubby the Tuba?
Michael Parkinson: Claro. Sparky e a sua Magia (referência a Sparky’s Magic Piano, uma série de histórias áudio para crianças, inicialmente criada em 1947).
David Bowie: Não, isso era…. Não, a outra. (entoa uma parte da música) Havia aquela batida estranha. (continua até chegar a uma nota alta) Era essa nota! (continua e para numa nota grave) Era estranho, percebes?
Michael Parkinson: Começo a… como é que lá chegaste, ao rock’n’roll…
David Bowie: Sim, mas ao mesmo tempo gostava do Little Richard, percebes?
Michael Parkinson: Sim, mas ao falares no Little Richard usaste o termo “rebelde”…
David Bowie: Sim.
Michael Parkinson: Qual era o propósito da tua revolta?
David Bowie: Oh, não acho que alguma vez tenha sido rebelde…
Michael Parkinson: Bom, ainda és…
David Bowie: Não, não, não! (o público ri) Só contra os meus pais, não mais do que isso. Sabes, não era contra o mundo em geral, eu queria obter o máximo do mundo, o máximo possível, portanto…
Michael Parkinson: Qual era o problema com os teus pais?
David Bowie: Lixam-te a vida, os teus pais… (o público ri)
Michael Parkinson: Mas achas mesmo que isso é verdade?
David Bowie: Hmm… Relativamente à minha mãe, sim. (risos) O meu pai era muito… Como é que é? Lixam-te a vida, os teus pais… Hmm… Podem não o querer fazer, mas fazem-no. E transferem os seus próprios problemas para ti. E ainda mais alguns adicionais, só para ti… (o público ri) (trata-se de uma citação de Philip Larkin, poeta britânico falecido em 1985: “They fuck you up, your mum and dad./They may not mean to, but they do./They fill you with the faults they had/And add some extra just for you./But they were fucked up in their turn/By fools in old-style hats and coats,/Who half the time were soppy-stern/And half at one another’s throats./Man hands on misery to man. It deepens like a coastal shelf./Get out as early as you can,/And don’t have any kids yourself.”) O último verso era bom. Como é que era, lembras-te do último verso?
Michael Parkinson: Eu não.
David Bowie: O homem passa a miséria ao homem, aprofunda-se como uma plataforma costeira, sai logo que possas, e não tenhas tu também filhos. (o público ri) É um poema inglês, hã? (todos riem)
Michael Parkinson: Então, não gostavas do teu pai e da tua mãe e do que eles te fizeram?
David Bowie: (canta) “Wings of a dove…!” Há uma nota estranha nessa parte, estás a ver? Bizarro, não é?
Michael Parkinson: Estou mais confuso do que quando comecei, mas…
David Bowie: Oh, não sabias? Às vezes confundo-me a mim mesmo!
Michael Parkinson: (apontando para Tom Hanks) Está completamente baralhado.
Tom Hanks: Não, continuo bem. Ainda estou a pensar no Tubby the Tuba… (todos riem)
Michael Parkinson: De onde surgiu o Ziggy Stardust?
David Bowie: Meu Deus, não sei!
Michael Parkinson: Foi a revolta que criou esta espécie de alter ego?
David Bowie: O facto é que nunca achei que cantasse muito bem e costumava imitar as vozes de outras pessoas se me cativassem. Quando era um miúdo, com 15 ou 16 anos, fixei-me bastante no Anthony Newley (ator, cantor e autor britânico falecido em 1999) porque havia algumas coisas nele… Antes de ter ido para os Estados Unidos e de ter passado por Las Vegas fazia coisas mesmo bizarras. A série de televisão The Strange World of Gurney Slade (série cómica de 1960, sobre a qual Bowie afirmou conter “muito de Monthy Python”)…
Michael Parkinson: Lembro-me dela.
David Bowie: … que era tão estranha e pensei: “Gosto do que o tipo faz, de para onde vai, é mesmo interessante”. Então, comecei a cantar canções como ele, mas andava a ler muitas coisas da geração dos angry young men (geração literária dos anos 50, desiludida com a sociedade britânica tradicional, sendo que o termo foi primeiramente usado para descrever o texto dramático de John Osborne Look Back in Anger), sabes? E Keith… como era? Era Woodhouse?
Michael Parkinson: Keith Woodhouse.
David Bowie: Sim, Keith Woodhouse e John Osborne, coisas do género. Então, escrevia essas canções estranhas à maneira do Tony Newley, mas as letras eram sobre lésbicas no exército e canibais e pedófilos e coisas assim… Sabes, eu pensava: “Sim, é a minha praia! A minha carreira vai ser assim!” (risos) E o primeiro álbum é realmente extraordinário nesse sentido. Quer dizer, perfeitamente olvidável, mas não há nada a apontar-lhe no que respeita a ambição. (risos)
Michael Parkinson: E aquela atração andrógina que desenvolveste? Donde surgiu, esse teu lado feminino?
David Bowie: Oh, isso sou eu mesmo: superfeminino!
Michael Parkinson: Mas quando é que começaste a ser feminino?
David Bowie: Hmm… Se calhar, quando vesti aquelas roupas… (o público ri e aplaude) (para Tom Hanks) É incrível o efeito de quando nos vestimos de mulher pela primeira vez, não é, Tom? (o público ri)
Tom Hanks: Pode ser uma carreira lucrativa. Pelo menos, durante uns tempos.
David Bowie: Sabes o que é que foi mesmo engraçado? Conseguir que a minha banda vestisse aquelas roupas. Porque eles eram todos de Yorkshire… Tenho de te dizer: o meu pai era de Yorkshire.
Michael Parkinson: De Lancaster, certo? (Lancaster fica no Lancashire)
David Bowie: Sim. Bom, algures entre Tadcaster, Doncaster e York. E a família da minha mãe era do Lancashire. Então, quando ouço alguém de York falar, quase que lá chego, sabes, quero… (imita um sotaque incompreensível e o público ri) Não consigo evitar. E tento tanto não falar com esse sotaque…
Michael Parkinson: Na realidade, imitaste-o muito bem.
David Bowie: Pareces o meu pai a falar, é mesmo estranho, não vou olhar para ti. (o público ri) A verdade é que vou porque ele era um bom homem. Então, os tipos eram todos de Hull, sabes? (numa voz funda e máscula) “Vamos tocar numa banda de rock e gosto das canções e tudo isso”. E eu dizia: “Sim, vai ser fixe” e “Querem ver o que vão vestir?” “Sim, claro… Nem pensar! É que nem pensar, não me apanhas vestido com isso!”. E eu dizia: “Não, acreditem, vai parecer óptimo, vai-vos assentar mesmo bem”. (o público ri) “Sim, pois”. Nem sei bem como, mas consegui convencê-los e, um par de noites depois, só tínhamos tocado duas vezes e era só raparigas atrás deles! E, de repente, o camarim mudou… (ainda num tom de voz grave) “Ok, quem tem o blush?” (o público ri) “Ei, Trevor, acabaste com o rímel?” Foi uma coisa fenomenal! Espantoso. Um bocadinho de eyeliner…
Michael Parkinson: Quando agora olhas para o passado…
David Bowie: Olho para o passado o mais raramente possível! (risos)
Michael Parkinson: Lembras-te das coisas com prazer?
David Bowie: Sim… Sim, sem dúvida. Vivemos tempos loucos, foi uma época fantástica. Não tínhamos ideia do que estávamos a fazer, a verdade é que não sabíamos para onde tudo ia. Eu só sabia que me aborrecia muito depressa e essa é que é a grande tragédia, acho, para mim… Bom, acho que não porque foi óptimo deixar aquilo para trás mas tenho tendência a saltitar, o meu limiar de atenção é muito pequeno, como suponho que já terás reparado. (o público ri) E houve um período de… Só estivemos juntos 18 meses, tudo terminou em 18 meses, o Ziggy Stardust. E pela metade do percurso, nove ou dez meses a partir do início, eu já sabia que tinha acabado e queria passar para algo novo, queria escrever um novo tipo de música, queria apresentar um novo tipo de teatralidade… E foi… nos últimos meses sentia-me mesmo aborrecido, mal podia esperar para acabar com aquilo.
Michael Parkinson: E o que é espantoso é que quase destruíste toda essa criatividade com as drogas e, no final, saíste ileso.
David Bowie: Sim. Acho que todo esse período foi ok, os anos finais, sabes, a parte final dos anos setenta. Mas a minha história, em termos de drogas e álcool e tudo o mais, não é diferente da de ninguém. E é quase como um livro didático.
Michael Parkinson: Só que sobreviveste.
David Bowie: Sim, muitos de nós sobreviveram, sabes? Não sou, de forma alguma, o único…
Michael Parkinson: Houve uma coisa que me fascinou enquanto pesquisava, viste um tipo na CNN (a CNN só apareceu em 1980), um médico a falar acerca dos efeitos da cocaína no cérebro humano. Isso fez-te mudar de ideias relativamente às drogas e teve o efeito de fazer com que não as quisesses usar?
David Bowie: Oh! Isso realmente, sim, não, a verdade é que isso não me afastou de nada. Quando vi… ( o público ri) Foi nos anos setenta e disse: “Uau! Mesmo fixe!”. (o público ri) Estavam a mostrar o cérebro de utilizadores de cocaína e todos os buracos que continha, buracos enormes. E eu pensei: “Sim!” (o público ri) “Sou eu!” Não me ocorreu que fosse uma coisa má. Só mais tarde é que cheguei a essa conclusão.
Michael Parkinson: E o que é que espoletou a mudança? O que foi?
David Bowie: Não podes ter relacionamentos com ninguém, não tens a noção da existência de mais ninguém, simplesmente… tornas-te uma pessoa mesmo horrível, percebes? E acho que me fartei de ser uma pessoa horrível, é tão simples como isso. E acho que tive a sorte de simplesmente parar, sabes.
Michael Parkinson: E o facto de seres pai agora? Porque tens uma filha com dois anos de idade, que tens a dizer?
David Bowie: Sim, é verdade, tenho uma menina maravilhosa chamada Alexandria e também um rapaz maravilhoso… com 31 anos.
Michael Parkinson: Sim, então…
David Bowie: Tenho dois. E claro que também tenho uma enteada, a Laker, com 21 anos.
Michael Parkinson: O teu filho nasceu durante aquele período…
David Bowie: Sim.
Michael Parkinson: … em que, de diferentes formas, eras um pai ausente…
David Bowie: Era. Sabes, estava sempre em tournée, era muito ambicioso, era novo, queria avançar e aparecer no palco. E, metade do tempo, estava demasiadamente ocupado às voltas pelo mundo.
Michael Parkinson: E agora tens a hipótese de viver tudo de novo e de recuperares o tempo perdido?
David Bowie: Sem dúvida. Sim. Quero dizer, de certa forma tive muita sorte. O casamento, claro, deu horrivelmente para o torto muito cedo. Mas o Joe está comigo desde os cinco, seis anos de idade, pelo que fomos uma família monoparental desde essa altura.
Michael Parkinson: És um pai do tipo New Age? Será que mudas as fraldas?
David Bowie: Não, sou ridiculamente Vitoriano. Não tenho salvação possível. Sinto uma enorme admiração pelos homens que são capazes de o fazer. Eu não consigo. Quero dizer, eu não… a minha mulher não me deixou, o que foi ótimo! (todos riem) Dizia-me sempre: “Sai daqui!”. Ela lidava com os alfinetes e embrulhava coisas e eu sabia que estava a preparar alguma coisa e que, no fim de tudo, a minha pequena ia aparecer! (o público ri) Era ótimo! Mas sou bom a dizer: “Isto é um livro” e “vamos dar uma olhada nisto” e “vamos a este museu”… Acho que sou bastante bom nisso.
Michael Parkinson: Sim. Quanto é que achas que ainda resta do garoto de Brixton?
David Bowie: Acho que não muito. Sabes…
Michael Parkinson: Vai-se avançando…
David Bowie: Nunca, até há uns 12 a 15 anos, me tornei em quem deveria ter sido. Passei grande parte da minha vida como, hmm, acho que a maioria das pessoas na indústria do entretenimento. À procura de mim mesmo, sabes, e a tentar compreender o que é que… para que é que cá estava, o que é que me fazia feliz na vida e quem era exatamente e quais eram as partes de mim que procurava esconder. Sabes, tens que te expor e acho que muitos de nós, no mundo do espetáculo, somos, por um lado, disfuncionais. Bastante disfuncionais e, além disso, em negação de quem somos e de para que é que existimos. Acho que há algum tipo de trauma nas nossas infâncias que nos faz desejar muito algum estranho tipo de afeto, sabes. Frequentemente, a pessoa que precisa do afeto não é muito boa quando se trata de o dar. E senti-me assim toda a vida, especialmente nos anos setenta, eu era assim. Queria muito envolver-me emocionalmente com os outros mas não sabia como fazê-lo. Sabes, os meus pais eram assim. E acho que Larkin tem razão nisso: eles passam muitos dos seus problemas para nós.
Michael Parkinson: Concordas, Tom?
Tom Hanks: Sim, sem dúvida que acho que é verdade. Fazemos parte de um negócio narcísico. Estamos sempre a pensar: “Como é que faço isso? Que é que tenho que fazer a seguir? Vamos falar sobre mim. Já chega de falarmos sobre mim. Que é que achas destes sapatos? São bons ou maus?”. É assim.
Michael Parkinson: E o outro aspeto de tudo isso, os problemas que os vossos filhos têm em lidar com esse tipo de abordagem narcísica, porque podemos ver o tipo de efeito que a fama tem em vocês e, consequentemente, como reagem de forma diferente das outras pessoas. Trata-se de uma coisa que não lhes podem explicar, não é? Quero dizer, eles é que têm que formar uma opinião acerca disso. É assim tão banal ou há coisas que possam fazer?
David Bowie: No meu caso, acho que o meu filho me viu crescer. Sabes, de certa forma foi muito estranho para ele e, às vezes, sinto que, quando está comigo, quase que tem uma faceta protetora em relação a mim.
Michael Parkinson: Toma conta de ti?
David Bowie: Bom, na verdade não, mas sim.
Michael Parkinson: Percebo.
David Bowie: E eu também me sinto assim, também quero protegê-lo.
Michael Parkinson: Vamos escutar um clássico teu, Life on Mars?. Mas, antes de mais, conta-me o que te levou a escrever essa canção.
David Bowie: Hmm… Quando eu não passava de um garoto…
Michael Parkinson: Queres fazê-lo com o sotaque de Yorkshire?
David Bowie: Não, não, não, não consigo acertar com o sotaque. (imita o sotaque de Yorkshire e o público ri) Eu estava numa editora e eles passavam certas canções, montes delas, do… Estava mesmo prestes a dizer do Oriente. Muitas canções europeias e queriam que eu as traduzisse… Traduzir não, que criasse letras em inglês, percebes? Uma delas era uma canção francesa que eu achava muito boa e escrevi uma letra mesmo horrível para ela, acho que se chama Even a Fool Learns to Love e entreguei-a, achei que se tinha perdido e, quando a ouvi na rádio, pensei: “esta é a minha canção, só que está com uma letra diferente!”. E era o (Frank) Sinatra a cantar o My Way. E disse-lhes: “Eu escrevi a letra, o que é que aconteceu? Dei com isto…”. E eles responderam: “Sim, mas pedimos ao Paul Anka para refazer a letra e ficou o My Way”.E fiquei mesmo zangado com a situação durante muito tempo, à volta de um ano… (o público ri) Por fim, pensei: “Eu consigo fazê-lo, posso criar uma coisa tão importante como essa e vou escrever uma canção que soe um pouco da mesma maneira”. E, então, escrevi Life on Mars? (risos), que é mais ou menos a minha vingança contra o My Way.
Michael Parkinson: Bom, graças a Deus que o fizeste. (todos riem) É uma belíssima canção, vamos ouvi-la?
David Bowie: Ok.
Michael Parkinson: O teu pianista aguarda-te. David Bowie: Life on Mars?. (o público aplaude)
David Bowie canta Life on Mars? acompanhado apenas pelo piano
David Bowie: (enquanto o público aplaude) Mike Garson no piano!
Michael Parkinson: Gostou, senhor Hanks?
Tom Hanks: Oh, eu…
Michael Parkinson: Acho que foi a mãe de todas as atuações.
Tom Hanks: (para David Bowie) Alguma vez ficaste no Sunset Marquis Hotel, em Los Angeles?
David Bowie: Não! (todos riem)
Tom Hanks: É um lugar lendário!
David Bowie: Conheço-o muito bem.
Tom Hanks: Um lugar lendário. Perdi-me lá algumas vezes. Mas o pátio está dividido a meio, com músicos dum lado e atores do outro. E todos os músicos olham para os atores: “Oh, vejam aqueles atores, têm a vida tão facilitada, só têm que dizer as deixas, há outros que as escrevem, não têm com que se preocupar”. E os atores olham para os músicos: “Vejam aqueles músicos, têm a vida tão facilitada, só têm que tocar guitarra e levantarem-se e cantarem”.
David Bowie: E também tens os cómicos no fundo!
Tom Hanks: Todos ocupados a fazer palermices. Sim, perguntam-te o que vais beber com a tua sanduíche.
David Bowie: É mesmo verdade. Todos os músicos que conheço querem ser atores ou cómicos. E os cómicos querem ser atores ou músicos. E acho que deve haver bastantes atores que gostariam de…
Michael Parkinson: Mas és feliz a fazer o que fazes?
David Bowie: Oh, sem dúvida. Completamente.
Michael Parkinson: A tua vida está calma como uma lagoa.
David Bowie: A sério?
Michael Parkinson: Acho que sim. Então, David, estiveste em tour até agora, não vais andar mais pelos palcos?
David Bowie: Vou para casa, tenho muitas saudades da minha mulher e da minha bebé, sabes, vou demorar-me a compor… (risos) depois. E… (o público ri) … ei, não era nada disso que queria dizer! E, depois, vem o Natal e acho que a minha filha já vai conseguir montar a árvore, sabes, dois anos e meio, vai fazer sentido.
Michael Parkinson: Bom, obrigado, gostei muito de tudo e espero…
David Bowie: Foi ótimo estar convosco, foi mesmo ótimo.
Michael Parkinson: David Bowie!
O público aplaude.
Bowie a sua banda interpretam Everyone Says Hi
Michael Parkinson: Obrigado.
David Bowie. É um grande prazer. Olá, Tom!
Tom Hanks: Olá, Dave.
David Bowie. Cá estamos. Obrigado!
Michael Parkinson: Há muita gente de Brixton no público, não há?
David Bowie: Uma par deles, sim. Acho que estou a reconhecer muita gente de Hatfield! (risos do público)
(…)
Michael Parkinson: Estou desapontado. Disseram-me que eras capaz de aparecer com um dos blusões do Little Richard.
David Bowie: (risos) Sim.
Michael Parkinson: Do teu grande herói, um blusão que agora adquiriste.
David Bowie: Adquiri-o através da minha mulher, foi num dos nossos aniversários de casamento, há alguns meses e ela… Quando eu era miúdo, o meu ídolo era o Little Richard. E, como ela sabia disso, encontrou um dos seus velhos blusões de palco, de 1956, e deu-mo como prenda de aniversário. E eu acho que o Little Richard era imenso! O tipo… Posso usá-lo como tenda no jardim. (o público ri) Ou seja, ele devia ter pernas bem pequenas, percebes, e um corpo grande porque as mangas são enormes… Acho que a primeira vez em que o vi deve ter sido em 1963. E acho que talvez tenha sido no Brixton Odeon. Não sei, alguém há de lembrar-se da tour, hoje em dia toda a gente se lembra de tudo. E os Rolling Stones eram a banda de suporte, foi a primeira vez em que os vi. E não eram lá muito conhecidos. Uma meia dúzia de miúdos acorreu para junto do palco, sabes, essa era a base de fãs deles, toda a gente lá estava pelo Little Richard. Acho que o Bo Didley também participava. E foi impagável. Nunca tinha visto nada tão rebelde na vida! Um tipo qualquer gritou: “Vai cortar esse cabelo!” (o público ri) E o Mick respondeu, nunca me hei de esquecer do que disse: “Vou ficar parecido contigo?” (imita o tom de voz de Jagger e o público ri) Pensei: “Meu Deus! Este é que é o futuro da música?” E foi mesmo!
Michael Parkinson: Mas foi a música que te cativou ou a maneira como atuaram?
David Bowie: Na verdade foi… Na verdade, foi a música. E toda a forma como atuaram. (risos)
Michael Parkinson: As duas.
David Bowie: Acho que foi a combinação. Quero dizer, lembro-me da minha mãe, ela não tinha noção do que estava a desencadear mas, ao pequeno-almoço, dizia sempre: “Oh, sabem, eu podia ter sido cantora!”. E começava a cantar. E havia uma coisa na rádio, quando eu tinha à volta de seis anos, todos os domingos o Ernest Lough a cantar O For the Wings of a Dove.
Michael Parkinson: Era o “rapaz soprano”…
David Bowie: O “rapaz soprano”. Sim, já morreu, certo?
Michael Parkinson: A voz morreu antes dele.
David Bowie: Ai sim? (o público ri) E a minha mãe cantava “O for the wings, for the wings of a dove, far away, far away” (a cantar) e isso tudo. E a verdade é que era boa e eu pensava “Talvez ela tivesse podido ser cantora…”, percebes, seria uma grande cantora. Portanto, acho que uma das minhas primeiras influências foi o Ernest Lough. “O for the wings…” (o público ri)
Michael Parkinson: Mas lá estavas tu em Brixton… E, depois, em Bromley.
David Bowie: E depois em Bromley.
Michael Parkinson: Então, foi naquele instante, quando viste o Little Richard, que decidiste “esta é a minha vida”?
David Bowie: Na verdade, foi ter visto o Ernest Lough. Ele foi à igreja e vi-o lá a cantar e pensei “oh, isso é…” Mas havia outras coisas na rádio que me levaram a pensar na música. Os temas musicais que não… que me deixavam baralhado. Lembro-me de que, nesses tempos, também passavam muito a Suite dos Planetas (The Planets op. 32) de (Gustav) Holst. Especialmente Marte (Mars). (entoa um pouco o tema) Aquelas notas eram tão estranhas, não se encaixavam em nada que eu conhecesse, percebes? E temas assim e outros em que as notas musicais pareciam perder o rumo cativaram-me, como Tubby the Tuba (tema de 1945, com música de George Kleinsinger e letra de Paul Tripp)… Lembras-te de Tubby the Tuba?
Michael Parkinson: Claro. Sparky e a sua Magia (referência a Sparky’s Magic Piano, uma série de histórias áudio para crianças, inicialmente criada em 1947).
David Bowie: Não, isso era…. Não, a outra. (entoa uma parte da música) Havia aquela batida estranha. (continua até chegar a uma nota alta) Era essa nota! (continua e para numa nota grave) Era estranho, percebes?
Michael Parkinson: Começo a… como é que lá chegaste, ao rock’n’roll…
David Bowie: Sim, mas ao mesmo tempo gostava do Little Richard, percebes?
Michael Parkinson: Sim, mas ao falares no Little Richard usaste o termo “rebelde”…
David Bowie: Sim.
Michael Parkinson: Qual era o propósito da tua revolta?
David Bowie: Oh, não acho que alguma vez tenha sido rebelde…
Michael Parkinson: Bom, ainda és…
David Bowie: Não, não, não! (o público ri) Só contra os meus pais, não mais do que isso. Sabes, não era contra o mundo em geral, eu queria obter o máximo do mundo, o máximo possível, portanto…
Michael Parkinson: Qual era o problema com os teus pais?
David Bowie: Lixam-te a vida, os teus pais… (o público ri)
Michael Parkinson: Mas achas mesmo que isso é verdade?
David Bowie: Hmm… Relativamente à minha mãe, sim. (risos) O meu pai era muito… Como é que é? Lixam-te a vida, os teus pais… Hmm… Podem não o querer fazer, mas fazem-no. E transferem os seus próprios problemas para ti. E ainda mais alguns adicionais, só para ti… (o público ri) (trata-se de uma citação de Philip Larkin, poeta britânico falecido em 1985: “They fuck you up, your mum and dad./They may not mean to, but they do./They fill you with the faults they had/And add some extra just for you./But they were fucked up in their turn/By fools in old-style hats and coats,/Who half the time were soppy-stern/And half at one another’s throats./Man hands on misery to man. It deepens like a coastal shelf./Get out as early as you can,/And don’t have any kids yourself.”) O último verso era bom. Como é que era, lembras-te do último verso?
Michael Parkinson: Eu não.
David Bowie: O homem passa a miséria ao homem, aprofunda-se como uma plataforma costeira, sai logo que possas, e não tenhas tu também filhos. (o público ri) É um poema inglês, hã? (todos riem)
Michael Parkinson: Então, não gostavas do teu pai e da tua mãe e do que eles te fizeram?
David Bowie: (canta) “Wings of a dove…!” Há uma nota estranha nessa parte, estás a ver? Bizarro, não é?
Michael Parkinson: Estou mais confuso do que quando comecei, mas…
David Bowie: Oh, não sabias? Às vezes confundo-me a mim mesmo!
Michael Parkinson: (apontando para Tom Hanks) Está completamente baralhado.
Tom Hanks: Não, continuo bem. Ainda estou a pensar no Tubby the Tuba… (todos riem)
Michael Parkinson: De onde surgiu o Ziggy Stardust?
David Bowie: Meu Deus, não sei!
Michael Parkinson: Foi a revolta que criou esta espécie de alter ego?
David Bowie: O facto é que nunca achei que cantasse muito bem e costumava imitar as vozes de outras pessoas se me cativassem. Quando era um miúdo, com 15 ou 16 anos, fixei-me bastante no Anthony Newley (ator, cantor e autor britânico falecido em 1999) porque havia algumas coisas nele… Antes de ter ido para os Estados Unidos e de ter passado por Las Vegas fazia coisas mesmo bizarras. A série de televisão The Strange World of Gurney Slade (série cómica de 1960, sobre a qual Bowie afirmou conter “muito de Monthy Python”)…
Michael Parkinson: Lembro-me dela.
David Bowie: … que era tão estranha e pensei: “Gosto do que o tipo faz, de para onde vai, é mesmo interessante”. Então, comecei a cantar canções como ele, mas andava a ler muitas coisas da geração dos angry young men (geração literária dos anos 50, desiludida com a sociedade britânica tradicional, sendo que o termo foi primeiramente usado para descrever o texto dramático de John Osborne Look Back in Anger), sabes? E Keith… como era? Era Woodhouse?
Michael Parkinson: Keith Woodhouse.
David Bowie: Sim, Keith Woodhouse e John Osborne, coisas do género. Então, escrevia essas canções estranhas à maneira do Tony Newley, mas as letras eram sobre lésbicas no exército e canibais e pedófilos e coisas assim… Sabes, eu pensava: “Sim, é a minha praia! A minha carreira vai ser assim!” (risos) E o primeiro álbum é realmente extraordinário nesse sentido. Quer dizer, perfeitamente olvidável, mas não há nada a apontar-lhe no que respeita a ambição. (risos)
Michael Parkinson: E aquela atração andrógina que desenvolveste? Donde surgiu, esse teu lado feminino?
David Bowie: Oh, isso sou eu mesmo: superfeminino!
Michael Parkinson: Mas quando é que começaste a ser feminino?
David Bowie: Hmm… Se calhar, quando vesti aquelas roupas… (o público ri e aplaude) (para Tom Hanks) É incrível o efeito de quando nos vestimos de mulher pela primeira vez, não é, Tom? (o público ri)
Tom Hanks: Pode ser uma carreira lucrativa. Pelo menos, durante uns tempos.
David Bowie: Sabes o que é que foi mesmo engraçado? Conseguir que a minha banda vestisse aquelas roupas. Porque eles eram todos de Yorkshire… Tenho de te dizer: o meu pai era de Yorkshire.
Michael Parkinson: De Lancaster, certo? (Lancaster fica no Lancashire)
David Bowie: Sim. Bom, algures entre Tadcaster, Doncaster e York. E a família da minha mãe era do Lancashire. Então, quando ouço alguém de York falar, quase que lá chego, sabes, quero… (imita um sotaque incompreensível e o público ri) Não consigo evitar. E tento tanto não falar com esse sotaque…
Michael Parkinson: Na realidade, imitaste-o muito bem.
David Bowie: Pareces o meu pai a falar, é mesmo estranho, não vou olhar para ti. (o público ri) A verdade é que vou porque ele era um bom homem. Então, os tipos eram todos de Hull, sabes? (numa voz funda e máscula) “Vamos tocar numa banda de rock e gosto das canções e tudo isso”. E eu dizia: “Sim, vai ser fixe” e “Querem ver o que vão vestir?” “Sim, claro… Nem pensar! É que nem pensar, não me apanhas vestido com isso!”. E eu dizia: “Não, acreditem, vai parecer óptimo, vai-vos assentar mesmo bem”. (o público ri) “Sim, pois”. Nem sei bem como, mas consegui convencê-los e, um par de noites depois, só tínhamos tocado duas vezes e era só raparigas atrás deles! E, de repente, o camarim mudou… (ainda num tom de voz grave) “Ok, quem tem o blush?” (o público ri) “Ei, Trevor, acabaste com o rímel?” Foi uma coisa fenomenal! Espantoso. Um bocadinho de eyeliner…
Michael Parkinson: Quando agora olhas para o passado…
David Bowie: Olho para o passado o mais raramente possível! (risos)
Michael Parkinson: Lembras-te das coisas com prazer?
David Bowie: Sim… Sim, sem dúvida. Vivemos tempos loucos, foi uma época fantástica. Não tínhamos ideia do que estávamos a fazer, a verdade é que não sabíamos para onde tudo ia. Eu só sabia que me aborrecia muito depressa e essa é que é a grande tragédia, acho, para mim… Bom, acho que não porque foi óptimo deixar aquilo para trás mas tenho tendência a saltitar, o meu limiar de atenção é muito pequeno, como suponho que já terás reparado. (o público ri) E houve um período de… Só estivemos juntos 18 meses, tudo terminou em 18 meses, o Ziggy Stardust. E pela metade do percurso, nove ou dez meses a partir do início, eu já sabia que tinha acabado e queria passar para algo novo, queria escrever um novo tipo de música, queria apresentar um novo tipo de teatralidade… E foi… nos últimos meses sentia-me mesmo aborrecido, mal podia esperar para acabar com aquilo.
Michael Parkinson: E o que é espantoso é que quase destruíste toda essa criatividade com as drogas e, no final, saíste ileso.
David Bowie: Sim. Acho que todo esse período foi ok, os anos finais, sabes, a parte final dos anos setenta. Mas a minha história, em termos de drogas e álcool e tudo o mais, não é diferente da de ninguém. E é quase como um livro didático.
Michael Parkinson: Só que sobreviveste.
David Bowie: Sim, muitos de nós sobreviveram, sabes? Não sou, de forma alguma, o único…
Michael Parkinson: Houve uma coisa que me fascinou enquanto pesquisava, viste um tipo na CNN (a CNN só apareceu em 1980), um médico a falar acerca dos efeitos da cocaína no cérebro humano. Isso fez-te mudar de ideias relativamente às drogas e teve o efeito de fazer com que não as quisesses usar?
David Bowie: Oh! Isso realmente, sim, não, a verdade é que isso não me afastou de nada. Quando vi… ( o público ri) Foi nos anos setenta e disse: “Uau! Mesmo fixe!”. (o público ri) Estavam a mostrar o cérebro de utilizadores de cocaína e todos os buracos que continha, buracos enormes. E eu pensei: “Sim!” (o público ri) “Sou eu!” Não me ocorreu que fosse uma coisa má. Só mais tarde é que cheguei a essa conclusão.
Michael Parkinson: E o que é que espoletou a mudança? O que foi?
David Bowie: Não podes ter relacionamentos com ninguém, não tens a noção da existência de mais ninguém, simplesmente… tornas-te uma pessoa mesmo horrível, percebes? E acho que me fartei de ser uma pessoa horrível, é tão simples como isso. E acho que tive a sorte de simplesmente parar, sabes.
Michael Parkinson: E o facto de seres pai agora? Porque tens uma filha com dois anos de idade, que tens a dizer?
David Bowie: Sim, é verdade, tenho uma menina maravilhosa chamada Alexandria e também um rapaz maravilhoso… com 31 anos.
Michael Parkinson: Sim, então…
David Bowie: Tenho dois. E claro que também tenho uma enteada, a Laker, com 21 anos.
Michael Parkinson: O teu filho nasceu durante aquele período…
David Bowie: Sim.
Michael Parkinson: … em que, de diferentes formas, eras um pai ausente…
David Bowie: Era. Sabes, estava sempre em tournée, era muito ambicioso, era novo, queria avançar e aparecer no palco. E, metade do tempo, estava demasiadamente ocupado às voltas pelo mundo.
Michael Parkinson: E agora tens a hipótese de viver tudo de novo e de recuperares o tempo perdido?
David Bowie: Sem dúvida. Sim. Quero dizer, de certa forma tive muita sorte. O casamento, claro, deu horrivelmente para o torto muito cedo. Mas o Joe está comigo desde os cinco, seis anos de idade, pelo que fomos uma família monoparental desde essa altura.
Michael Parkinson: És um pai do tipo New Age? Será que mudas as fraldas?
David Bowie: Não, sou ridiculamente Vitoriano. Não tenho salvação possível. Sinto uma enorme admiração pelos homens que são capazes de o fazer. Eu não consigo. Quero dizer, eu não… a minha mulher não me deixou, o que foi ótimo! (todos riem) Dizia-me sempre: “Sai daqui!”. Ela lidava com os alfinetes e embrulhava coisas e eu sabia que estava a preparar alguma coisa e que, no fim de tudo, a minha pequena ia aparecer! (o público ri) Era ótimo! Mas sou bom a dizer: “Isto é um livro” e “vamos dar uma olhada nisto” e “vamos a este museu”… Acho que sou bastante bom nisso.
Michael Parkinson: Sim. Quanto é que achas que ainda resta do garoto de Brixton?
David Bowie: Acho que não muito. Sabes…
Michael Parkinson: Vai-se avançando…
David Bowie: Nunca, até há uns 12 a 15 anos, me tornei em quem deveria ter sido. Passei grande parte da minha vida como, hmm, acho que a maioria das pessoas na indústria do entretenimento. À procura de mim mesmo, sabes, e a tentar compreender o que é que… para que é que cá estava, o que é que me fazia feliz na vida e quem era exatamente e quais eram as partes de mim que procurava esconder. Sabes, tens que te expor e acho que muitos de nós, no mundo do espetáculo, somos, por um lado, disfuncionais. Bastante disfuncionais e, além disso, em negação de quem somos e de para que é que existimos. Acho que há algum tipo de trauma nas nossas infâncias que nos faz desejar muito algum estranho tipo de afeto, sabes. Frequentemente, a pessoa que precisa do afeto não é muito boa quando se trata de o dar. E senti-me assim toda a vida, especialmente nos anos setenta, eu era assim. Queria muito envolver-me emocionalmente com os outros mas não sabia como fazê-lo. Sabes, os meus pais eram assim. E acho que Larkin tem razão nisso: eles passam muitos dos seus problemas para nós.
Michael Parkinson: Concordas, Tom?
Tom Hanks: Sim, sem dúvida que acho que é verdade. Fazemos parte de um negócio narcísico. Estamos sempre a pensar: “Como é que faço isso? Que é que tenho que fazer a seguir? Vamos falar sobre mim. Já chega de falarmos sobre mim. Que é que achas destes sapatos? São bons ou maus?”. É assim.
Michael Parkinson: E o outro aspeto de tudo isso, os problemas que os vossos filhos têm em lidar com esse tipo de abordagem narcísica, porque podemos ver o tipo de efeito que a fama tem em vocês e, consequentemente, como reagem de forma diferente das outras pessoas. Trata-se de uma coisa que não lhes podem explicar, não é? Quero dizer, eles é que têm que formar uma opinião acerca disso. É assim tão banal ou há coisas que possam fazer?
David Bowie: No meu caso, acho que o meu filho me viu crescer. Sabes, de certa forma foi muito estranho para ele e, às vezes, sinto que, quando está comigo, quase que tem uma faceta protetora em relação a mim.
Michael Parkinson: Toma conta de ti?
David Bowie: Bom, na verdade não, mas sim.
Michael Parkinson: Percebo.
David Bowie: E eu também me sinto assim, também quero protegê-lo.
Michael Parkinson: Vamos escutar um clássico teu, Life on Mars?. Mas, antes de mais, conta-me o que te levou a escrever essa canção.
David Bowie: Hmm… Quando eu não passava de um garoto…
Michael Parkinson: Queres fazê-lo com o sotaque de Yorkshire?
David Bowie: Não, não, não, não consigo acertar com o sotaque. (imita o sotaque de Yorkshire e o público ri) Eu estava numa editora e eles passavam certas canções, montes delas, do… Estava mesmo prestes a dizer do Oriente. Muitas canções europeias e queriam que eu as traduzisse… Traduzir não, que criasse letras em inglês, percebes? Uma delas era uma canção francesa que eu achava muito boa e escrevi uma letra mesmo horrível para ela, acho que se chama Even a Fool Learns to Love e entreguei-a, achei que se tinha perdido e, quando a ouvi na rádio, pensei: “esta é a minha canção, só que está com uma letra diferente!”. E era o (Frank) Sinatra a cantar o My Way. E disse-lhes: “Eu escrevi a letra, o que é que aconteceu? Dei com isto…”. E eles responderam: “Sim, mas pedimos ao Paul Anka para refazer a letra e ficou o My Way”.E fiquei mesmo zangado com a situação durante muito tempo, à volta de um ano… (o público ri) Por fim, pensei: “Eu consigo fazê-lo, posso criar uma coisa tão importante como essa e vou escrever uma canção que soe um pouco da mesma maneira”. E, então, escrevi Life on Mars? (risos), que é mais ou menos a minha vingança contra o My Way.
Michael Parkinson: Bom, graças a Deus que o fizeste. (todos riem) É uma belíssima canção, vamos ouvi-la?
David Bowie: Ok.
Michael Parkinson: O teu pianista aguarda-te. David Bowie: Life on Mars?. (o público aplaude)
David Bowie canta Life on Mars? acompanhado apenas pelo piano
David Bowie: (enquanto o público aplaude) Mike Garson no piano!
Michael Parkinson: Gostou, senhor Hanks?
Tom Hanks: Oh, eu…
Michael Parkinson: Acho que foi a mãe de todas as atuações.
Tom Hanks: (para David Bowie) Alguma vez ficaste no Sunset Marquis Hotel, em Los Angeles?
David Bowie: Não! (todos riem)
Tom Hanks: É um lugar lendário!
David Bowie: Conheço-o muito bem.
Tom Hanks: Um lugar lendário. Perdi-me lá algumas vezes. Mas o pátio está dividido a meio, com músicos dum lado e atores do outro. E todos os músicos olham para os atores: “Oh, vejam aqueles atores, têm a vida tão facilitada, só têm que dizer as deixas, há outros que as escrevem, não têm com que se preocupar”. E os atores olham para os músicos: “Vejam aqueles músicos, têm a vida tão facilitada, só têm que tocar guitarra e levantarem-se e cantarem”.
David Bowie: E também tens os cómicos no fundo!
Tom Hanks: Todos ocupados a fazer palermices. Sim, perguntam-te o que vais beber com a tua sanduíche.
David Bowie: É mesmo verdade. Todos os músicos que conheço querem ser atores ou cómicos. E os cómicos querem ser atores ou músicos. E acho que deve haver bastantes atores que gostariam de…
Michael Parkinson: Mas és feliz a fazer o que fazes?
David Bowie: Oh, sem dúvida. Completamente.
Michael Parkinson: A tua vida está calma como uma lagoa.
David Bowie: A sério?
Michael Parkinson: Acho que sim. Então, David, estiveste em tour até agora, não vais andar mais pelos palcos?
David Bowie: Vou para casa, tenho muitas saudades da minha mulher e da minha bebé, sabes, vou demorar-me a compor… (risos) depois. E… (o público ri) … ei, não era nada disso que queria dizer! E, depois, vem o Natal e acho que a minha filha já vai conseguir montar a árvore, sabes, dois anos e meio, vai fazer sentido.
Michael Parkinson: Bom, obrigado, gostei muito de tudo e espero…
David Bowie: Foi ótimo estar convosco, foi mesmo ótimo.
Michael Parkinson: David Bowie!
O público aplaude.