2004: Entrevista com Kerry O’Brien no programa 7.30 Report da televisão australiana
Kerry O’Brien: David Bowie, escreveu-se e disse-se quase tanto sobre os diferentes rostos de Bowie, os diferentes designs…
David Bowie: Não assumo qualquer responsabilidade por isso, Kerry. Como estás?
Kerry O’Brien: …como sobre a reinvenção na tua música. Quando te lançaste na construção de uma carreira, quarenta anos atrás, já tinhas o tipo de ambição musical inovadora que emergiu nos anos setenta ou querias, antes de tudo, simplesmente ser uma estrela?
David Bowie: Queria escrever coisas teatr… Na verda… Algo estranhamente… bom, talvez não tão estranhamente assim se olharmos para isso no contexto, mas quando tinha uns 17, 18 anos, o que pretendia acima de tudo era escrever qualquer coisa para a Broadway. Queria escrever um musical. Não tinha nenhuma ideia de como se fazia ou de como os musicais se construíam, mas a ideia de escrever alguma coisa baseada no rock para a Broadway, deixava-me muito intrigado. Achava que seria uma coisa maravilhosa. E via-me como alguém que acabaria a escrever musicais. De algum modo. Provavelmente, algum tipo de musicais rock. Mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Portanto, de certo modo, essas ideias foram um pouco anuladas quando compreendi até que ponto esse era um empreendimento enorme e tão ambicioso, percebes, porque temos que escrever os diálogos e tudo o resto e a verdade é que não sabia como o abordar. Assim, tomei um rumo muito mais simples ao abreviar a ideia do musical para um mero conceito de um álbum e criei as personagens que acompanhavam os diferentes álbuns. E, enquanto o fazia, descobri que estava a representar cada vez mais a música que escrevia. Portanto, as coisas foram impulsionadas pelas personagens. Isso começou a interferir com a música de modo positivo. E, por fim, o meu interesse acabou por se centrar apenas na música. Portanto, é quase como se eu tivesse deixado para trás uma série de ambições teatrais quando efetivamente me deixei envolver na música.
Kerry O’Brien: Ziggy Stardust é uma ilustração clássica disso… Assim, quanto do Davey Jones havia no Stiggy… hã…
David Bowie: Stiggy!
Kerry O’Brien: Ziggy!
David Bowie: Pessoalmente, gosto de Stiggy! Esse ia ser o meu projeto seguinte, Stiggy Dardust. (risos) Ou será que era Freddie Stardust? (risos) Na verdade, não acho que fosse… Temos um cómico chamado Freddie Starr na Grã-Bretanha. O Freddie Starr é o tipo que comeu o hamster, não sei se te lembras dessa história… Freddie Starr come hamster! Também não veio no Times. E esse tipo era muito parecido comigo e, então, foi a um cirurgião plástico para alterar a cara e agora parece o Freddie Starr! (risos) Achei essa história mesmo engraçada… Onde é que vamos…
Kerry O’Brien: Quanto do Davey Jones é que havia no Ziggy?
David Bowie: Oh, sim. Na verdade, não acho que houvesse muito, ou seja, honestamente… Só estava a tentar, a tentar criar uma ideia de como expandir o rock e os seus horizontes. E adotei a forma alienígena para o Ziggy, já que era suposto ser algum tipo de alienígena. Baseei-o muito no conceito japonês de… Nessa altura em particular, no início dos anos setenta, sabia-se muito pouco sobre o Japão, o Japão não se tinha realmente explorado e difundido as suas coisas para o Ocidente, sabes. Assim, encarávamos o Japão como uma sociedade alienígena mas era uma sociedade alienígena humana, pelo que podíamos estabelecer uma ligação humana com o Japão com muito maior facilidade do que com, poder-se-ia dizer, Marte, que era algo muito distante… Portanto…
Kerry O’Brien: Até que ponto foi fácil abandonar a personagem? Mataste-o de uma forma tão enfática…
David Bowie: Sim, não me custou nada. Não me custou mesmo nada porque eu queria avançar. Em 73, nós… sabes?, incrível, a coisa não durou mais do que dezoito meses. E foi incrível, fizemos um ano de tournées. Nunca chegámos sequer a tocar na Europa. Tocámos em Inglaterra e nos Estados Unidos. Devia ter matado o meu manager! Nunca tocámos na Europa, nunca tocámos na Austrália e aquilo acabou. Acabou simplesmente. Eu decidi “Já chega. Não quero ficar prisioneiro de tudo isto”. Porque eu queria mesmo… Por volta dos últimos dois ou três meses da tournée, já tinha mais ou menos decidido o que queria fazer, o que queria escrever… Assim, para mim tornou-se absolutamente necessário avançar.
Kerry O’Brien: E o que estava por detrás das imagens andróginas dos anos setenta?
David Bowie: Parecia tão perfeito naquele tempo! Era algo que representava na perfeição o espírito dos anos setenta. Havia um sentimento tão forte de estar a sair de… Os anos cinquenta e a entrada nos anos sessenta representaram uma grande abertura em termos de atitudes, sobretudo os anos sessenta. E então, nos anos setenta tudo se tornou… Foi o pluralismo dos anos setenta, estás a ver? Houve, havia tantas faces em cada história nos anos setenta… Antes disso, nos anos cinquenta, tudo era a preto e branco. Era uma história sim, outra história não. Mas nos anos setenta podíamos encarar as coisas de tantas maneiras diferentes, nada era certo, a ideia dos absolutos estava mais ou menos a desaparecer, já não era “assim está bem, assim está mal”. E eu achei que aquilo resumia o que os anos setenta iriam ser. Foi um palpite, um bom palpite.
Kerry O’Brien: Mas quanto disso eras tu?
David Bowie: Oh, acho… sem dúvida que era eu! Quero dizer, eu estava… as minhas opiniões e os meus interesses, eu era extremamente abrangente. Isto é, não havia nada que não me interessasse, tinha uma forte curiosida… Ainda tenho, tenho uma curiosidade enorme relativamente a praticamente tudo. Exceto country and western, claro. Mas à parte isso, gosto realmente de compreender a sociedade em que vivo e de saber como funciona. Aquilo que as pessoas pensam, percebes? Não se pode ser um autor de outra forma, acho. Para que possas escrever tens que saber onde estás.
Kerry O’Brien: É sobretudo assim que te vês, como um autor? Antes de mais?
David Bowie: Acho que até há uns dois anos atrás teria respondido que sim. Absolutamente, completamente. Mas sinto-me tão surpreendido pelo facto de estar mesmo… Nunca gostei muito de atuar. Quero dizer, ter os aparelhos de teatro para me ajudar no palco e usá-los…
Kerry O’Brien: E havia alguma timidez?
David Bowie: Sim, efetivamente, nunca me senti naturalmente um artista de palco, sabes, eu não, no fundo de mim não era uma pessoa de ultrajes, a verdade é que era um rapazinho muito sossegado do signo de Capricórnio. E, aparentemente, as funções da caracterização podiam ser o meu pontapé de saída. Durante estes últimos dois ou três anos tenho adorado simplesmente cantar as canções que escrevi para toda essa gente. (risos) Hmm, eu mesmo, tenho-me interpretado a mim mesmo e há oito anos que toco com uma banda que me apoia e que é fantástica. Portanto, agora, sim, sou um autor e também um artista de palco.
Kerry O’Brien: Bom, se pensarmos nesse rapazinho tímido e sossegado que descreveste, como é que lidaste com a fama? Quero dizer, a fama tornou-se central com o Ziggy Stardust e continuou, tornou-se simplesmente maior…
David Bowie: Sim, eu nunca, mas nunca, em momento algum, gostei da fama, ou seja, no auge de tudo nunca saía, odiava sair. Não gostava de festas, não costumava ir a festas, a verdade é que me isolava em vez de ir a clubes ou de só sair dos clubes às duas ou três da manhã, quero dizer, não era um animal da noite. Simplesmente não gostava da fama. Conseguir uma mesa num restaurante poderia ter sido bom se ao menos comesse. Mas nesse tempo não costumava comer… (risos)
Kerry O’Brien: É verdade que escreveste e gravaste a canção Fame e que o John Lennon trabalhou contigo nela …
David Bowie: Trabalhou, sim.
Kerry O’Brien: Fala-me disso…
David Bowie: Partiu de uma conversa que tivemos. Eu disse: “Sabes, detesto este meu manager, que é que posso fazer, como é que arranjo um manager novo?” E ele disse: “Alto aí! Nada de managers, não precisas de um manager”. Ora, ele foi o primeiro artista que encontrei que me disse que não precisava de um manager, que não era preciso. E Deus o abençoe para sempre. Livrei-me do meu manager e passei virtualmente a gerir-me para o resto da vida… Tinha conselheiros de negócios e tudo isso, mas a ideia de ter um manager nunca mais se me atravessou no caminho desde cerca de 77…
Kerry O’Brien: Sentiste que foi estimulante trabalhar com o John Lennon?
David Bowie: …ou, antes, 75. Oh, que diabo, foi uma das influências mais marcantes na minha vida musical. Quero dizer, eu achava que ele representava o que de melhor se podia fazer com o rock’n’roll. Eu tinha um tal… interesse por ele no sentido em que era capaz de ir roubar coisas à vanguarda e procurar ideias completamente externas, na periferia do que era o mainstream… E então, tornava-as… aplicava-as de modo funcional a algo que era considerado populista e fazia com que tudo funcionasse! Era capaz de ter a ideia mais estranha e torná-la acessível às massas. E eu achava isso absolutamente admirável. Ou seja, tratava-se de fazer arte para o povo em vez de a manter como algo de elitista. Havia tanto nele que eu admirava… Era fantástico.
Kerry O’Brien: Viver em Los Angeles durante os anos setenta foi muitas vezes descrito como um período perdido ou de depressão para ti, se não dominado pela cocaína e certamente profundamente afetado por ela.
David Bowie: Sim.
Kerry O’Brien: Quais são as tuas principais recordações desse período?
David Bowie: Não há recordações principais de Los Angeles! (risos)
Kerry O’Brien: Bom, ao olhar para trás, qual é a tua perspetiva?
David Bowie: Acho que grande parte daquilo tinha a ver com eu querer funcionar por trás do que era realmente o meu tipo de personalidade extremamente tímida e reclusiva. E eu… como a maioria das pessoas, envolvi-me profundamente com as drogas. Achei que talvez me ajudassem a romper com as minhas inibições. Mas claro que não é assim. As drogas lançam-nos para um atoleiro, um inferno psíquico e emocional. Fazem sobressair… ou criam traumas terríveis. Mas é óbvio que eu não fazia ideia…
Kerry O’Brien: O que dirias que isso te custou em termos pessoais?
David Bowie: Oh, custou-me muitos anos que poderia ter usado de forma diferente, percebes, e um mais saudável e gratificante tipo de… Quero dizer, acho que o trabalho que fiz durante esse período foi surpreendentemente bom, se bem me entendes…
Kerry O’Brien: Mas o que não sabes é o que poderias ter feito se…
David Bowie: Sim. O que acontece é que, sabes, tanta gente, especialmente, está na moda dizer: “não terias conseguido escrever aquilo se não tivesses usado drogas” e tudo isso. E eu duvido em absoluto que isso seja verdade. Porque eu acho que algumas das coisas melhores que escrevi durante esse período, já estava limpo… E… acho que isso refuta essa argumentação.
Kerry O’Brien: Penso que quando te entrevistaram tanto como te entrevistaram e te citaram tanto como te citaram poderá ser um pouco injusto ir repescar certas perguntas, sobretudo desse período. Quando li uma citação de uma entrevista que deste na altura à Rolling Stone, na qual dizias “Acredito muito firmemente no fascismo…”
David Bowie: Meus Deus…
Kerry O’Brien: “… Precisamos de uma reviravolta ditatorial de direita”... O que era aquilo?
David Bowie: Acho que é capaz de ter sido um pouco a coca a falar. (sorriso) Foi também parte de… caí na armadilha da magia negra cabalística e da ideia de… a influência de (Aleister) Crowley, sabes, a época, era uma parte significativa de meados dos anos setenta e deixei-me desorientar completamente por tudo isso. Foi um período horrível, lamentável para mim. No fim, a minha única escapatória foi limpar-me e, compreendes, pôr um fim à minha ligação à cocaína, que se tinha transformado num problema de tal ordem que não conseguia funcionar diariamente de outro modo. Não podia… Não comia, não conseguia comer, se vires fotografias minhas desse período, eu pesava, nem sei, 40, 43 quilos ou à volta disso, era simplesmente lamentável. Fico absolutamente espantado por ter mesmo conseguido sobreviver a esse período.
Kerry O’Brien: Ultrapassaste-o, obviamente, e continuaste a produzir música inovadora. É normalmente aceite que perdeste o teu rumo artístico nos anos 80 e já te vi descrevê-los como o teu período Phil Collins. Que aconteceu?
David Bowie: Pobre Phil… (sorri) Humm… (risos) Ouve… Esse é que é o problema quando alguém se torna o símbolo de algo e o Phil, nesse caso particular, é alguém que efetivamente alcançou, nessa altura, um tipo de popularidade mainstream até aí desconhecida. Portanto, estou a usar-te apenas como um símbolo, Phil. (risos) Sim… O Let’s Dance apanhou-me completamente de surpresa. Quero dizer, não fazia ideia de que algum dia alcançaria esse tipo de popularidade na arena do mainstream. E simplesmente não sabia o que fazer com ela. De repente, dei comigo a fazer tournées diferentes de qualquer coisa que tivesse feito até então. A tocar em estádios, não em clubes e teatros, percebes, e foi…
Kerry O’Brien: De certa forma, inebriante?
David Bowie: Foi inebriante. Mas, por outro lado, foi um pouco assustador porque comecei a pensar: “Que sequência é que dou a isto? O que é que faço a seguir?” Então, fiz dois álbuns que acho que foram realmente escritos para um público. Tentei ir ao encontro… das expectativas do público, aquilo que achava que queriam. E acho que foram artisticamente desastrosos por causa disso. Ao olhar para outros artistas, contemporâneos, algo que tive que fazer para saber se estava sozinho naquilo, vejo que não sou o único a ter feito alguns disparates ao longo de uma carreira de 35 anos.
Kerry O’Brien: Teria sido milagroso se…
David Bowie: Mas acho que me portei bem se só fiz dois álbuns que realmente considero maus… (risos)
Kerry O’Brien: E a travessia dos anos 90 até este momento…
David Bowie: Sim.
Kerry O’Brien: O David Bowie atual é bastante convencional, simplesmente satisfeito com a realidade. Já não és o desbravador de caminhos?
David Bowie: Espero ser alguém que outros artistas possam encarar como um indivíduo que aprendeu a gerir o segredo de alguma longevidade na profissão que escolheram. Continuo a escrever e a produzir a música que sempre quis e ainda tenho um público muito leal. Não acho que a minha vida pudesse ser melhor e acho… Acho que sou um bom exemplo. (risos)
Kerry O’Brien: E o legado? Como gostarias que fosse o teu legado?
David Bowie: Gostaria que as pessoas acreditassem que tive cortes de cabelo espetaculares. (pisca o olho e ri)
Kerry O’Brien: Sem problemas.
David Bowie: Ai, sim? Tenho fotos que provam o contrário. (risos)
Kerry O’Brien: Ainda se encontram em muitas paredes!
David Bowie: E em muitos chapéus também!
Kerry O’Brien: A sério…
David Bowie: Bom, para o bem e para o mal, acho que talvez a ideia de abrir novas possibilidades em termos de, quero dizer, falando estritamente em termos musicais, conseguir olhar para todos os tipos de música e ser capaz de trabalhar a partir de todos eles, conseguir novas ideias cruzadas a partir de diferentes fontes, coisas híbridas, e tentar conjugá-las e apresentá-las e alargar uma cultura musical que já de si é bastante rica, mas torná-la mais extravagantemente interrogativa e orgulhosa e selvaticamente enérgica (sorriso), acho. Isso seria bom.
Kerry O’Brien: E a pergunta a que talvez não consigas responder: quanto do Davey Jones sobrevive no David Bowie de 2004?
David Bowie: Hmm…
Kerry O’Brien: Lembras-te dele?
David Bowie: Acho que tenho bastante do Davey Jones. Acho que ele finalmente se tornou o homem que sempre deveria ter sido. E acho que atualmente sou mais fiel à minha verdadeira natureza do que alguma vez fui, exceto quando tinha uns oito ou nove anos, da primeira vez em que ouvi o Little Richard.
Kerry O’Brien: E sentes-te muito confortável assim?
David Bowie: Sim, sinto-me muito confortável assim.
Kerry O’Brien: David Bowie, obrigado por esta conversa.
David Bowie: Obrigado.
David Bowie: Não assumo qualquer responsabilidade por isso, Kerry. Como estás?
Kerry O’Brien: …como sobre a reinvenção na tua música. Quando te lançaste na construção de uma carreira, quarenta anos atrás, já tinhas o tipo de ambição musical inovadora que emergiu nos anos setenta ou querias, antes de tudo, simplesmente ser uma estrela?
David Bowie: Queria escrever coisas teatr… Na verda… Algo estranhamente… bom, talvez não tão estranhamente assim se olharmos para isso no contexto, mas quando tinha uns 17, 18 anos, o que pretendia acima de tudo era escrever qualquer coisa para a Broadway. Queria escrever um musical. Não tinha nenhuma ideia de como se fazia ou de como os musicais se construíam, mas a ideia de escrever alguma coisa baseada no rock para a Broadway, deixava-me muito intrigado. Achava que seria uma coisa maravilhosa. E via-me como alguém que acabaria a escrever musicais. De algum modo. Provavelmente, algum tipo de musicais rock. Mas a verdade é que isso nunca aconteceu. Portanto, de certo modo, essas ideias foram um pouco anuladas quando compreendi até que ponto esse era um empreendimento enorme e tão ambicioso, percebes, porque temos que escrever os diálogos e tudo o resto e a verdade é que não sabia como o abordar. Assim, tomei um rumo muito mais simples ao abreviar a ideia do musical para um mero conceito de um álbum e criei as personagens que acompanhavam os diferentes álbuns. E, enquanto o fazia, descobri que estava a representar cada vez mais a música que escrevia. Portanto, as coisas foram impulsionadas pelas personagens. Isso começou a interferir com a música de modo positivo. E, por fim, o meu interesse acabou por se centrar apenas na música. Portanto, é quase como se eu tivesse deixado para trás uma série de ambições teatrais quando efetivamente me deixei envolver na música.
Kerry O’Brien: Ziggy Stardust é uma ilustração clássica disso… Assim, quanto do Davey Jones havia no Stiggy… hã…
David Bowie: Stiggy!
Kerry O’Brien: Ziggy!
David Bowie: Pessoalmente, gosto de Stiggy! Esse ia ser o meu projeto seguinte, Stiggy Dardust. (risos) Ou será que era Freddie Stardust? (risos) Na verdade, não acho que fosse… Temos um cómico chamado Freddie Starr na Grã-Bretanha. O Freddie Starr é o tipo que comeu o hamster, não sei se te lembras dessa história… Freddie Starr come hamster! Também não veio no Times. E esse tipo era muito parecido comigo e, então, foi a um cirurgião plástico para alterar a cara e agora parece o Freddie Starr! (risos) Achei essa história mesmo engraçada… Onde é que vamos…
Kerry O’Brien: Quanto do Davey Jones é que havia no Ziggy?
David Bowie: Oh, sim. Na verdade, não acho que houvesse muito, ou seja, honestamente… Só estava a tentar, a tentar criar uma ideia de como expandir o rock e os seus horizontes. E adotei a forma alienígena para o Ziggy, já que era suposto ser algum tipo de alienígena. Baseei-o muito no conceito japonês de… Nessa altura em particular, no início dos anos setenta, sabia-se muito pouco sobre o Japão, o Japão não se tinha realmente explorado e difundido as suas coisas para o Ocidente, sabes. Assim, encarávamos o Japão como uma sociedade alienígena mas era uma sociedade alienígena humana, pelo que podíamos estabelecer uma ligação humana com o Japão com muito maior facilidade do que com, poder-se-ia dizer, Marte, que era algo muito distante… Portanto…
Kerry O’Brien: Até que ponto foi fácil abandonar a personagem? Mataste-o de uma forma tão enfática…
David Bowie: Sim, não me custou nada. Não me custou mesmo nada porque eu queria avançar. Em 73, nós… sabes?, incrível, a coisa não durou mais do que dezoito meses. E foi incrível, fizemos um ano de tournées. Nunca chegámos sequer a tocar na Europa. Tocámos em Inglaterra e nos Estados Unidos. Devia ter matado o meu manager! Nunca tocámos na Europa, nunca tocámos na Austrália e aquilo acabou. Acabou simplesmente. Eu decidi “Já chega. Não quero ficar prisioneiro de tudo isto”. Porque eu queria mesmo… Por volta dos últimos dois ou três meses da tournée, já tinha mais ou menos decidido o que queria fazer, o que queria escrever… Assim, para mim tornou-se absolutamente necessário avançar.
Kerry O’Brien: E o que estava por detrás das imagens andróginas dos anos setenta?
David Bowie: Parecia tão perfeito naquele tempo! Era algo que representava na perfeição o espírito dos anos setenta. Havia um sentimento tão forte de estar a sair de… Os anos cinquenta e a entrada nos anos sessenta representaram uma grande abertura em termos de atitudes, sobretudo os anos sessenta. E então, nos anos setenta tudo se tornou… Foi o pluralismo dos anos setenta, estás a ver? Houve, havia tantas faces em cada história nos anos setenta… Antes disso, nos anos cinquenta, tudo era a preto e branco. Era uma história sim, outra história não. Mas nos anos setenta podíamos encarar as coisas de tantas maneiras diferentes, nada era certo, a ideia dos absolutos estava mais ou menos a desaparecer, já não era “assim está bem, assim está mal”. E eu achei que aquilo resumia o que os anos setenta iriam ser. Foi um palpite, um bom palpite.
Kerry O’Brien: Mas quanto disso eras tu?
David Bowie: Oh, acho… sem dúvida que era eu! Quero dizer, eu estava… as minhas opiniões e os meus interesses, eu era extremamente abrangente. Isto é, não havia nada que não me interessasse, tinha uma forte curiosida… Ainda tenho, tenho uma curiosidade enorme relativamente a praticamente tudo. Exceto country and western, claro. Mas à parte isso, gosto realmente de compreender a sociedade em que vivo e de saber como funciona. Aquilo que as pessoas pensam, percebes? Não se pode ser um autor de outra forma, acho. Para que possas escrever tens que saber onde estás.
Kerry O’Brien: É sobretudo assim que te vês, como um autor? Antes de mais?
David Bowie: Acho que até há uns dois anos atrás teria respondido que sim. Absolutamente, completamente. Mas sinto-me tão surpreendido pelo facto de estar mesmo… Nunca gostei muito de atuar. Quero dizer, ter os aparelhos de teatro para me ajudar no palco e usá-los…
Kerry O’Brien: E havia alguma timidez?
David Bowie: Sim, efetivamente, nunca me senti naturalmente um artista de palco, sabes, eu não, no fundo de mim não era uma pessoa de ultrajes, a verdade é que era um rapazinho muito sossegado do signo de Capricórnio. E, aparentemente, as funções da caracterização podiam ser o meu pontapé de saída. Durante estes últimos dois ou três anos tenho adorado simplesmente cantar as canções que escrevi para toda essa gente. (risos) Hmm, eu mesmo, tenho-me interpretado a mim mesmo e há oito anos que toco com uma banda que me apoia e que é fantástica. Portanto, agora, sim, sou um autor e também um artista de palco.
Kerry O’Brien: Bom, se pensarmos nesse rapazinho tímido e sossegado que descreveste, como é que lidaste com a fama? Quero dizer, a fama tornou-se central com o Ziggy Stardust e continuou, tornou-se simplesmente maior…
David Bowie: Sim, eu nunca, mas nunca, em momento algum, gostei da fama, ou seja, no auge de tudo nunca saía, odiava sair. Não gostava de festas, não costumava ir a festas, a verdade é que me isolava em vez de ir a clubes ou de só sair dos clubes às duas ou três da manhã, quero dizer, não era um animal da noite. Simplesmente não gostava da fama. Conseguir uma mesa num restaurante poderia ter sido bom se ao menos comesse. Mas nesse tempo não costumava comer… (risos)
Kerry O’Brien: É verdade que escreveste e gravaste a canção Fame e que o John Lennon trabalhou contigo nela …
David Bowie: Trabalhou, sim.
Kerry O’Brien: Fala-me disso…
David Bowie: Partiu de uma conversa que tivemos. Eu disse: “Sabes, detesto este meu manager, que é que posso fazer, como é que arranjo um manager novo?” E ele disse: “Alto aí! Nada de managers, não precisas de um manager”. Ora, ele foi o primeiro artista que encontrei que me disse que não precisava de um manager, que não era preciso. E Deus o abençoe para sempre. Livrei-me do meu manager e passei virtualmente a gerir-me para o resto da vida… Tinha conselheiros de negócios e tudo isso, mas a ideia de ter um manager nunca mais se me atravessou no caminho desde cerca de 77…
Kerry O’Brien: Sentiste que foi estimulante trabalhar com o John Lennon?
David Bowie: …ou, antes, 75. Oh, que diabo, foi uma das influências mais marcantes na minha vida musical. Quero dizer, eu achava que ele representava o que de melhor se podia fazer com o rock’n’roll. Eu tinha um tal… interesse por ele no sentido em que era capaz de ir roubar coisas à vanguarda e procurar ideias completamente externas, na periferia do que era o mainstream… E então, tornava-as… aplicava-as de modo funcional a algo que era considerado populista e fazia com que tudo funcionasse! Era capaz de ter a ideia mais estranha e torná-la acessível às massas. E eu achava isso absolutamente admirável. Ou seja, tratava-se de fazer arte para o povo em vez de a manter como algo de elitista. Havia tanto nele que eu admirava… Era fantástico.
Kerry O’Brien: Viver em Los Angeles durante os anos setenta foi muitas vezes descrito como um período perdido ou de depressão para ti, se não dominado pela cocaína e certamente profundamente afetado por ela.
David Bowie: Sim.
Kerry O’Brien: Quais são as tuas principais recordações desse período?
David Bowie: Não há recordações principais de Los Angeles! (risos)
Kerry O’Brien: Bom, ao olhar para trás, qual é a tua perspetiva?
David Bowie: Acho que grande parte daquilo tinha a ver com eu querer funcionar por trás do que era realmente o meu tipo de personalidade extremamente tímida e reclusiva. E eu… como a maioria das pessoas, envolvi-me profundamente com as drogas. Achei que talvez me ajudassem a romper com as minhas inibições. Mas claro que não é assim. As drogas lançam-nos para um atoleiro, um inferno psíquico e emocional. Fazem sobressair… ou criam traumas terríveis. Mas é óbvio que eu não fazia ideia…
Kerry O’Brien: O que dirias que isso te custou em termos pessoais?
David Bowie: Oh, custou-me muitos anos que poderia ter usado de forma diferente, percebes, e um mais saudável e gratificante tipo de… Quero dizer, acho que o trabalho que fiz durante esse período foi surpreendentemente bom, se bem me entendes…
Kerry O’Brien: Mas o que não sabes é o que poderias ter feito se…
David Bowie: Sim. O que acontece é que, sabes, tanta gente, especialmente, está na moda dizer: “não terias conseguido escrever aquilo se não tivesses usado drogas” e tudo isso. E eu duvido em absoluto que isso seja verdade. Porque eu acho que algumas das coisas melhores que escrevi durante esse período, já estava limpo… E… acho que isso refuta essa argumentação.
Kerry O’Brien: Penso que quando te entrevistaram tanto como te entrevistaram e te citaram tanto como te citaram poderá ser um pouco injusto ir repescar certas perguntas, sobretudo desse período. Quando li uma citação de uma entrevista que deste na altura à Rolling Stone, na qual dizias “Acredito muito firmemente no fascismo…”
David Bowie: Meus Deus…
Kerry O’Brien: “… Precisamos de uma reviravolta ditatorial de direita”... O que era aquilo?
David Bowie: Acho que é capaz de ter sido um pouco a coca a falar. (sorriso) Foi também parte de… caí na armadilha da magia negra cabalística e da ideia de… a influência de (Aleister) Crowley, sabes, a época, era uma parte significativa de meados dos anos setenta e deixei-me desorientar completamente por tudo isso. Foi um período horrível, lamentável para mim. No fim, a minha única escapatória foi limpar-me e, compreendes, pôr um fim à minha ligação à cocaína, que se tinha transformado num problema de tal ordem que não conseguia funcionar diariamente de outro modo. Não podia… Não comia, não conseguia comer, se vires fotografias minhas desse período, eu pesava, nem sei, 40, 43 quilos ou à volta disso, era simplesmente lamentável. Fico absolutamente espantado por ter mesmo conseguido sobreviver a esse período.
Kerry O’Brien: Ultrapassaste-o, obviamente, e continuaste a produzir música inovadora. É normalmente aceite que perdeste o teu rumo artístico nos anos 80 e já te vi descrevê-los como o teu período Phil Collins. Que aconteceu?
David Bowie: Pobre Phil… (sorri) Humm… (risos) Ouve… Esse é que é o problema quando alguém se torna o símbolo de algo e o Phil, nesse caso particular, é alguém que efetivamente alcançou, nessa altura, um tipo de popularidade mainstream até aí desconhecida. Portanto, estou a usar-te apenas como um símbolo, Phil. (risos) Sim… O Let’s Dance apanhou-me completamente de surpresa. Quero dizer, não fazia ideia de que algum dia alcançaria esse tipo de popularidade na arena do mainstream. E simplesmente não sabia o que fazer com ela. De repente, dei comigo a fazer tournées diferentes de qualquer coisa que tivesse feito até então. A tocar em estádios, não em clubes e teatros, percebes, e foi…
Kerry O’Brien: De certa forma, inebriante?
David Bowie: Foi inebriante. Mas, por outro lado, foi um pouco assustador porque comecei a pensar: “Que sequência é que dou a isto? O que é que faço a seguir?” Então, fiz dois álbuns que acho que foram realmente escritos para um público. Tentei ir ao encontro… das expectativas do público, aquilo que achava que queriam. E acho que foram artisticamente desastrosos por causa disso. Ao olhar para outros artistas, contemporâneos, algo que tive que fazer para saber se estava sozinho naquilo, vejo que não sou o único a ter feito alguns disparates ao longo de uma carreira de 35 anos.
Kerry O’Brien: Teria sido milagroso se…
David Bowie: Mas acho que me portei bem se só fiz dois álbuns que realmente considero maus… (risos)
Kerry O’Brien: E a travessia dos anos 90 até este momento…
David Bowie: Sim.
Kerry O’Brien: O David Bowie atual é bastante convencional, simplesmente satisfeito com a realidade. Já não és o desbravador de caminhos?
David Bowie: Espero ser alguém que outros artistas possam encarar como um indivíduo que aprendeu a gerir o segredo de alguma longevidade na profissão que escolheram. Continuo a escrever e a produzir a música que sempre quis e ainda tenho um público muito leal. Não acho que a minha vida pudesse ser melhor e acho… Acho que sou um bom exemplo. (risos)
Kerry O’Brien: E o legado? Como gostarias que fosse o teu legado?
David Bowie: Gostaria que as pessoas acreditassem que tive cortes de cabelo espetaculares. (pisca o olho e ri)
Kerry O’Brien: Sem problemas.
David Bowie: Ai, sim? Tenho fotos que provam o contrário. (risos)
Kerry O’Brien: Ainda se encontram em muitas paredes!
David Bowie: E em muitos chapéus também!
Kerry O’Brien: A sério…
David Bowie: Bom, para o bem e para o mal, acho que talvez a ideia de abrir novas possibilidades em termos de, quero dizer, falando estritamente em termos musicais, conseguir olhar para todos os tipos de música e ser capaz de trabalhar a partir de todos eles, conseguir novas ideias cruzadas a partir de diferentes fontes, coisas híbridas, e tentar conjugá-las e apresentá-las e alargar uma cultura musical que já de si é bastante rica, mas torná-la mais extravagantemente interrogativa e orgulhosa e selvaticamente enérgica (sorriso), acho. Isso seria bom.
Kerry O’Brien: E a pergunta a que talvez não consigas responder: quanto do Davey Jones sobrevive no David Bowie de 2004?
David Bowie: Hmm…
Kerry O’Brien: Lembras-te dele?
David Bowie: Acho que tenho bastante do Davey Jones. Acho que ele finalmente se tornou o homem que sempre deveria ter sido. E acho que atualmente sou mais fiel à minha verdadeira natureza do que alguma vez fui, exceto quando tinha uns oito ou nove anos, da primeira vez em que ouvi o Little Richard.
Kerry O’Brien: E sentes-te muito confortável assim?
David Bowie: Sim, sinto-me muito confortável assim.
Kerry O’Brien: David Bowie, obrigado por esta conversa.
David Bowie: Obrigado.